1.Cada vez é mais difícil os meios de comunicação social escaparem à voragem da informação, que surge às catadupas, produzida por centrais do dinheiro, dos interesses ou simplesmente pelo egoísmo corporativo ou individual, pela indústria do entretenimento ou pela vertigem de informar antes que os outros. Cada vez a intervenção do jornalista é mais necessária mas a atividade do jornalismo ligada a uma profissão, ao sucesso imediato e aos resultados contamina qualquer intervenção que se possa fazer. Ao mesmo tempo, cá fora uma caterva de blogues radicais vai vigiando e pressionando para que se informe em nome de fações.
Numa carta ao diretor num semanário uma empresa queixa-se de um título na primeira página que a liga à Mossack Fonseca e que contradiz mesmo o conteúdo do artigo. O título mancha a imagem da empresa e num dos jornais seguintes (3 semanas depois) o jornal reconhece o erro publicando num cantinho da primeira página a correção. Mas o mal estava feito. É o que dá a sofreguidão dos títulos.
Há dias numa rádio uma jornalista conversava com o chefe do sindicato dos estivadores diante dos piquetes de greve e insistia por duas ou três vezes em direto, em jeito de desafio, se eles iam impedir os camiões de sair. Se isto não é intervenção e intromissão na realidade que se está a transmitir, então o que é? Não estava ali mesmo à frente de todos que os piquetes, se não fosse a polícia, impediriam os camiões de sair? E os jornalistas, numa de “politicamente corretos”, tratam os piquetes, realidade arcaica de há um século atrás, como se eles estivessem simplesmente a cumprir a lei, abençoando-lhes os excessos e muitas vezes acirrando-os a ultrapassar-se quando a autoridade chega.
Neste domingo, na manifestação dos colégios privados, uma repórter da rádio conversava com um casal de funcionários de um colégio. Depois de saber que estavam ali a defender o seu colégio que lhes dá emprego, a repórter perguntou-lhes: “E se lhes dessem emprego na escola pública, já se sentiriam satisfeitos e deixariam esta luta?” A repórter parou de fazer perguntas quando eles responderam que sim! Estava satisfeita. Caramba! Ainda mais admirável é a indignação dos cronistas que pensariam que as pessoas ficariam caladas vendo o desemprego a bater à porta ou os planos para os filhos irem por água abaixo ao entrarem para uma escola desconhecida. E não previu a tutela que o “desmame” depois da fartura daria esta reação em sectores largamente dependentes do Estado? Experimentem por exemplo passar a subsidiar apenas metade das corporações de bombeiros!
O jornalismo encontra-se numa encruzilhada fatal. Que fazer diante de realidades que se escondem, biombo atrás de biombo, lançando ecrãs que escondem a realidade? Que fazer perante forças que realizam os seus poderes na rua, de forma perfeitamente discricionária, muitas vezes de cara tapada e comportamento cobarde? Que fazer ao imaginar a poeira que se produzirá ao agitar certas entidades que ninguém se atreve a tocar? Ser jornalista e fazer jornalismo é atualmente matéria da maior exigência e que requer uma dose considerável de espírito de comunidade, discernimento e coragem.
2.”In vino veritas” é um ditado que o tempo ajudou a consagrar. Mesmo sabendo que o vinho se tornou o ópio do povo, uma espécie de droga leve durante séculos para certas camadas da população, temos de aceitar que se tornou num objeto cuja pureza se foi aperfeiçoando e ganhando nos nossos tempos requintes de pedra preciosa que se lapida cada vez com mais engenho.
A sua ligação à amizade vem de ser sinónimo de companheiro, uma porta aberta para a evasão e o ataque à frustração. Carlos Arruda dizia que «o vinho é o melhor lugar para nos encontrarmos com os amigos» e esta duplicação quando ambos estão presentes dá a um encontro uma força extraordinária. Ou dava, que os tempos já não são “como soía”. As amizades também se constroem (ou ainda mais) com outras bebidas ou outras drogas. O que poderá significar que a amizade não é suficiente para fazer companhia.
Amizade com palavras ou sem palavras? Sem amigos não conversamos mas outros dirão que o melhor amigo é aquele com quem conseguimos manter-nos calados. A amizade não sobrevive se não conseguirmos dar alguma coisa ao outro. Se estivermos a encolher-nos e a fechar-nos em nós próprios, dificilmente podemos querer ter amigos, já que não podemos “sê-lo” antes de os “ter”. Por isso as melhores amizades são aquelas que se fazem “naturalmente” em idade curta e que continuam “naturalmente” pela vida fora. Amizades em que não falta tempo, o melhor ingrediente.
Mal será quando estamos já em fase de “precisar de ter amigos”, de os fabricar quando eles não aparecem naturalmente. E, ao contrário do amor e da paixão, a amizade funciona com altruísmo, sem pensarmos em nós. O sentido mais profundo da amizade é «o facto de não querermos o sacrifício do outro, de não querermos nada, apenas manter o acordo duma aliança silenciosa» (Sándor Márai). Ai de nós quando alguém disser de nós que “nem sequer tem amigos”.
(“Almanaque da Amizade e do Vinho” – de 2012 – grátis nos supermercados na compra de duas garrafas de vinho; “As velas ardem até ao fim”, de Sándor Márai, uma narrativa fenomenal que mostra que a amizade desafia os limites.)
Por: Joaquim Igreja
