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O “imperdão”

Bilhete Postal

Preciso escrever sobre as mulheres mortas por ciúme,

Por despeito,

Por dor de corno,

Por dor de alma e por apoucamento.

Preciso protestar da enormidade desta violência.

As mulheres que lançam seus braços na lida do dia, que se diminuem por

força da relação construindo quotidianos de trabalho e de labuta.

As camisas não se engomam sós. A água não nasce nas garrafas frias do frigorífico. As casas de banho não fedem pela sorte, ou o vento, ou o acaso. Esta tarefa pequena que devia ser partilhada e tantas vezes é sozinha,

é isolada, muitas vezes é escrava. Eles desempregados e sem

proventos sentados no sofá esperam o jantar. Que é lá isso? Que Rei te

nasceu dentro? Que asno te encheu a mente. Levanta-te e lava, ergue-te

e esfrega, constrói o espaço de dois unidos num só. Que amor é esse

que desarruma o que dobro com carinho? Que amor asqueroso se senta no meu trabalho? Que direito de preguiça existe na lei?

Confrontada com a traição esmoreço. Conformada com a tradição desarmo.

Que degredo é este em que as mulheres não lideram os partidos, não concorrem à Presidência, não protagonizam as mudanças? Que vergonha é esta em que se fala mais dos animais que de nós mortas em caçadas constantes? Que Lei pode libertar um pérfido e um assassino? Como pode uma Assembleia não reunir de emergência para corrigir uma lei mal feita? Morreu mais uma mulher. Morrem todos os dias. Umas saem da vida, outras afogam-se em prantos, outras descobrem na melancolia um aconchego, há ainda quem se apague e definhe. Mas que posso dizer se elas não se revoltam contra as ideologias que as diminuem?

Que posso dizer se não criamos refúgios para todas quantas queiram deixar as

barbaridades religiosas? E sou contra que esses “idólatras” da

menoridade feminina vivam aqui. Sou porque se cumpra a intolerância

total para os crimes sobre as mulheres. Perceber porque se deixam redes criminosas de beiras de estrada, porque se permite cultos

perversos em territórios de conquista da liberdade e da igualdade.

Aqui nunca mais.

Como se fazem panfletos de caracóis no dia em que alguém caçou mais

uma mulher? Os assassinos estão livres, percorrem as cidades, vivem ao nosso lado.

Preciso protestar do que fazemos e do que omitimos. Preciso vociferar

contra a impunidade e a inocuidade. Quero indignadamente reiterar

exigência sobre os que deviam vigiar, os zeladores interruptos, os

fiscalizadores incompetentes, os que monitorizam displicentemente. A

mudança tem de fazer-se com as mulheres e elas precisam construir a

intolerância, o “imperdão”, a mais dura das leis contra esta

animalidade que nos coloca nas trevas.

Nunca mais.

(o texto é de Glória Ida – heteronomia feminina)

Por: Diogo Cabrita

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