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Carne Viva

Corta!

Cada geração tem o Cristo que merece. Se nos pirosos anos 70 surgiu um Jesus Cristo Superstar e na década seguinte foi a vez do «marginal» Cristo de Scorsese, depois dos tão marcantes quanto desinteressantes e aborrecidos «cristos» dos filmes de Cecil B. DeMille, Nicholas Ray ou de Zefirelli, os anos 00 têm também agora direito ao seu. Pela mão de Mel Gibson, com «A Paixão de Cristo», se nos não deparamos com um Cristo radicalmente diferente dos anteriores, a abordagem feita por Gibson, essa, não se assemelha a nada que tenhamos já visto antes.

Esqueçam tudo o que já viram. Violência no cinema? Já ouviu falar em tal coisa? Pensa até já ter visto filmes violentos?! Esqueça! Ainda não viu nada. Um filme como «Irreversivel», estreado entre nós não há muito tempo, e classificado como dos mais violentos filmes dos últimos anos, parece um episódio de «Uma Casa na Pradaria» se comparado com «A Paixão de Cristo». Saber se tanta violência faz sentido é, no entanto, uma discussão inócua e sem sentido. Quase tão urgente, importante e essencial como discutir se numa qualquer comédia romântica deveriam ser dados 20, 30 ou 50 beijos, ou se num filme porno deveria haver x ou y penetrações. A matemática ou estatísticas não são para aqui chamadas.

Polémico como qualquer filme sobre Cristo sempre é, esta nova aventura, na realização, de Gibson (e que aventura foi para levar este filme adiante), mesmo para quem não ligue a estas coisas da religião, é uma experiência inclassificável. Pena é que, entre toda a violência e dor presente no filme, muitos não consigam ali ver o que realmente interessa. O amor. Constante presença ignorada por quase todos. E com tanto amor presente, é curioso notar que, os pregadores de sempre, que tantas vezes se julgam os únicos detentores das capacidades para ver e praticar tal acto, são os primeiros a, quais cães raivosos, se lançarem ferozmente contra um filme que tantas vezes nem chegam a ver com olhos abertos, mas antes com punhos fechados e dentes bem cerrados. O ódio visto em tudo, muitas das vezes, não passa de um reflexo de algo mais profundo do interior de cada um.

Regressando ao filme, «A Paixão de Cristo» poderá nem ser um grande filme (o meu ainda estado de choque não me permite friamente decidir se o é), mas as sensações que provoca são por demais suficientes para o considerar, no mínimo, o mais estimulante filme estreado entre nós este ano («Lost in Translation» não conta para estas contas). Com uma realização menos sóbria que em «Braveheart», Mel Gibson vai mesmo buscar novas técnicas que sempre estiveram afastadas deste género de filme, o que poderá chocar os mais reaccionários. Câmara lenta e recurso a linguagens habitualmente presentes em videoclips, onde o exemplo da personagem de Satã é disso bom exemplo, servem como forma de atingir um público mais jovem que o habitual para este tipo de filme, realçando dessa forma ainda mais o pretendido papel de missionário do realizador australiano.

Retrato das últimas doze horas de Jesus Cristo, «A Paixão de Cristo» concentra-se em todo o seu sofrimento, ao longo do caminho percorrido até à crucificação. Num papel seguro de Jim Caviezel – provavelmente o mais sóbrio dos vários Cristos cinematográficos – Mel Gibson constrói o mais apaixonante relato daquilo que terão sido as últimas horas de Cristo, num registo muitas das vezes hipnótico, em pleno contraste com os momentos de catarse, onde os nossos limites de resistência ao sofrimento alheio são postos à prova como nunca antes. Tão inesquecível quanto difícil de aguentar.

Por: Hugo Sousa

cinecorta@hotmail.com

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