Estamos em Março de 2030. Estou sentado num banco do Jardim José de Lemos, a deitar milho aos pombos. Pelo menos espero que sejam pombos, não daqueles novos pássaros mutantes e carnívoros que têm vindo a atacar à bicada reformados pacíficos como eu. Coisas das experiências com a genética e com a clonagem. Estou a fazer tempo até à hora da reunião das quintas-feiras no Caçador. Vamos hoje continuar a discutir as formas de luta a adoptar para conseguirmos a restauração do Município da Guarda e a restituição da Catedral, perdida em 2020 para o Fundão para onde foi transferida por download via Cosmonet (estas modernas tecnologias dão cabo de mim). Vão estar presentes o presidente da Junta de Freguesia da Sé (única a resistir, depois da extinção de todas as outras freguesias do concelho por falta de população), Ernesto Gonçalves (o mais antigo autarca do país), José Igreja, o presidente da Assembleia de Freguesia e poucos mais, que não sobramos muitos.
A tarefa não vai ser fácil, que os critérios para a constituição de um concelho são rígidos e nós nem sequer nos aproximamos. Em primeiro lugar, não temos uma única escola primária. Depois do encerramento definitivo da maternidade no Hospital Sousa Martins em 2005, na sequência de uma série de aberturas, encerramentos (cada vez mais prolongados) e reaberturas, todas as grávidas passaram a dar à luz na agora cidade da Cova da Beira (de que a Guarda é hoje uma freguesia). Um dia, se bem me lembro em 2015, foi encerrada a delegação da Guarda do Instituto da Juventude. Os motivos eram óbvios mas mesmo assim o Rui Isidro produziu no “Interior” uma catilinária contra os responsáveis pelo antigo movimento “Pela Criança” (de que só já ele se lembrava) a quem responsabilizava pelo sucedido. A seguir fechou o resto, e já não restava muito.
A sangria de população, então apenas grave, aumentou para proporções inauditas e pura e simplesmente cessou o influxo de pessoas vindas de concelhos ainda mais desfavorecidos que o nosso, que passaram a fugir para Viseu e para a Cova da Beira. No espaço de poucos anos, a pirâmide de idades ficou invertida e passou a haver muito mais velhos que crianças. E depois, um dia, alguém reparou que havia mais funerais agora do que antigamente e explicaram-lhe que era apenas por haver muitos velhos e estes não poderem durar sempre. Entretanto, na Cova da Beira, a aí vereadora Ana Manso vai propondo um hospital novo, com uma moderna unidade de geriatria, destinada a “minorar o desconforto dos velhinhos da Guarda”.
Por aqui, a brigada do reumático agradece mas tem outras ideias. Para já, conseguimos a transformação do antigo Paço do Município em lar da terceira idade. A demolição pura e simples, proposta por alguns, era um desrespeito para com os milhões gastos na sua construção. Depois, o despovoamento brutal das áreas limítrofes da antiga cidade trouxe pelo menos uma vantagem: passou a haver tantos prédios devolutos e durante tanto tempo que a Junta conseguiu comprar todos por tuta-e-meia e iniciar a sua metódica demolição. Assim desapareceram os bairros de São Domingos, da Sequeira, da Luz, da Senhora dos Remédios, das Lameirinhas. No seu lugar foram plantadas milhares de árvores e aplicaram-se algumas ideias do antigo e abandonado programa Pólis.
Daqui a pouco, na reunião, vamos discutir se é de fechar estradas, recolher abaixo-assinados ou tentar qualquer outra coisa. Há tempos, o presidente da República, Santana Lopes, ao passar por aqui deu-nos uma sugestão para parar a decadência da freguesia e “retomar a senda do progresso”: “plantem palmeiras”. O mais certo, perante as alternativas, é ficarmos a discutir se o Benfica vai ou não conquistar o heptacampeonato.
Por: António Ferreira