O processo de descentralização administrativa a que vamos assistindo por estes dias não pára de convocar sentimentos ambíguos. Sempre achei que a descentralização não é a esmola que se distribui aos pobres e enjeitados do desenvolvimento mas que deve ser, antes de mais, um instrumento de articulação do país político. Por isso, não pode estar ao serviço de estratégias meramente conjunturais associadas aos fundos europeus, nem dependente dos protagonismos assumidos, ou por assumir, dos autarcas. A descentralização tem de ser uma verdadeira regionalização ou corre o risco de se perder no acessório, no local, na dispersão dos meios e na ausência de significado político. Temo que o actual processo não acrescente nada à articulação do país político, que nada traga de visão global do que deve ser o Portugal das regiões e que, pelo contrário, apenas some confusão, desarticulação e assimetria. E, contudo, é preciso começar por algum lado…
Fazendo questão de destacar que o seu projecto nada tem que ver com a regionalização, este governo já provocou, sem se querer dar conta disso, muito do que deplorava na tão demonizada lógica da regionalização. O utilitarismo mais imediato determina o rodopio dos municípios em torno dos centros gravitacionais que parecem ter mais a oferecer, e muitas vezes parece mesmo que estamos perante o retalhar desesperado do mapa em busca de renovadas soberanias e fidelidades políticas. Como se não houvesse dia seguinte. Como era augurado em alguns cartazes durante o referendo de 1998… A lógica da competição instalou-se e, de alguma forma, a anarquia e a desconfiança com que muitos caracterizam o panorama internacional transfere-se para o plano doméstico.
A fragmentação e a assimetria dominam o projecto, desafiando assim a sua coerência interna. Passa a haver ‘metrópoles’, comunidades urbanas, associações intermunicipais, numa gradação que está longe de se ficar pela neutralidade das estatísticas demográficas. E para que nada fique de fora da previsibilidade descentralizadora, até há associações regionais constituídas para fins específicos, como se estes pudessem estar ausentes da lógica de acção de unidades regionais! Não sem razão, e procurando testar os limites da coerência do processo, houve já quem tivesse proposto a criação de uma área metropolitana de Bragança a Portalegre… Ao contrário da regionalização, que previa uma verdadeira reorganização administrativa do país e a consequente substituição de entidades díspares, o processo actual parece seguir a lógica da sobreposição. As novas entidades não substituem os distritos, nem as CCDR, nem as divisões e subdivisões estabelecidas pelos serviços dos diferentes ministérios, nem os círculos eleitorais. E, contudo, parece inegável a necessidade de um novo ponto de partida mobilizador.
Para dizer a verdade, surpreendeu-me que algo do distrito da Guarda tivesse sobrevivido à discussão, e que não houvesse mais municípios em debandada. Mas também é verdade que o relativo isolamento e o encosto de Salamanca tornariam essa possibilidade mais difícil de materializar. Em todo o caso, o processo demonstra à saciedade a ausência de uma estratégia e discurso de distrito/região, dos políticos da Guarda, nos 30 anos da democracia. Pelo que tenho lido, às vezes parece que a chegada de Belmonte e da Covilhã é vista como a forma de reconstruir o mito do distrito, compensando as partidas de Fornos, Aguiar, Foz Côa, Seia e Gouveia. Se os políticos da Guarda não quiserem deixar morrer definitivamente o distrito e se quiserem jogar um papel decisivo na nova comunidade, têm de mostrar que dispõem de um projecto mobilizador e coerente para esses espaços. A capitalidade não é um privilégio, merece-se.
Por: Marcos Farias Ferreira