«Nenhuma idade conhece o sossego dos poetas cujo coração insaciável tem exigências que não poupam o mais comum dos mortais, a começar por nós próprios. Sem memória nem consciência não produziríamos sequer a intenção das nossas palavras».
Guerra, Álvaro, (1991), Memória, Lisboa, Círculo de Leitores, p.5.
À semelhança de tantos outros séculos anteriores, o século XX foi marcado por inúmeras crises nacionais e internacionais que, por vezes de uma forma indelével e violenta, alteraram o rumo da História, reconstruindo identidades nacionais, dilacerando nações, marcando novos tempos, assinalando novos regimes políticos, redefinido os mosaicos sociais, étnicos e raciais. No entanto, os momentos de crise assinalam não só mudanças históricas por vezes radicais, como são em geral períodos propícios para a criatividade, acelerando e espoletando a criação artística nas suas mais diversas áreas. Talvez por levarem o ser humano a experiências limite, talvez como forma de exorcizar feridas e fantasmas, o certo é que as grandes crises do século foram sempre seguidas de períodos muito férteis em criações artísticas.
É neste sentido que propomos, na crónica de hoje uma leitura de Crónicas Jugoslavas de Álvaro Guerra, publicadas em 1996 pela D. Quixote e hoje à espera de uma merecida reedição. Galardoadas com o Prémio da Crónica da Associação Portuguesa de Escritores, foram escritas no rescaldo de uma das mais graves crises que dilaceraram o continente europeu: a desintegração da Jugoslávia e a guerra sangrenta e cruel que vitimou tantas vidas.
Álvaro Guerra, pseudónimo literário de Manuel Soares, é inquestionavelmente uma personalidade literária que marcou o final do século XX. Autor de diversos romances, demonstrou ser no seu tempo e para o futuro uma personalidade multifacetada, experimentando géneros diversos, em criações vívidas, marcadas por um estilo muito pessoal, em permanente diálogo com o tempo e com a história. Escritor, ensaísta, assessor, diplomata e jornalista, exerceu funções de embaixador de Portugal, durante sete anos em Belgrado, entre 1977 e 1984. Aliando a sua experiência de vida no país a uma extraordinária sensibilidade, o cronista, num exercício de estilo notável, reúne nestas treze crónicas memórias fragmentadas de um país trespassado por uma sangrenta guerra que levou, como se sabe, à sua destruição.
Nestes treze textos, somos convidados a revisitar a Jugoslávia do passado, tal como a memória afetiva e seletiva do cronista a preservou: sabores, cores, cheiros, sons; pontes, mosteiros, rios, bosques; pintores, cineastas, poetas… de tudo se constroem estas crónicas, afinal de contas, fragmentos, eivados de lirismo, da ex-Jugoslávia que a escrita brilhante de Álvaro Guerra resgata de um passado não muito longínquo a fim de homenagear um país “degolado pela faca da história”.
Crónicas Jugoslavas são, assim, um exemplo acabado de como uma profunda crise política, étnica e cultural, capaz de destruir uma nação e matar milhares de civis, foi o mote e a inspiração para uma obra-prima da cronística contemporânea.
Ana Teresa Peixinho*
*Professora da Universidade de Coimbra