Poucos serão os escritores da lusa língua que tenham inventado mais neologismos que Mia Couto. Talvez por isso, por estar a ler um dos seus livros, surgiu-me, em face das notícias que me entram em casa sem sequer pedir licença, a ideia de inventar mais este que escolhi para título.
Num novel dicionário da língua de todos nós talvez a entrada fosse a seguinte:
Machetice, arte de olvidar, mais ou menos conscientemente, períodos da vida; intrujar por omissão.
E cá vamos nós, neste Portugal dos valores que mais altos se levantam, aturando esta e outras machetices…
Imagine o leitor que um seu filho se levanta uma bela e solarenga manhã e, de chofre, lhe atira um:
– Pai decidi que quero ser cirurgião!!!…
E o caro leitor, voz ainda rouca, a coçar sofregamente os olhos ensonados, pensa um momento. Lembra-se da notícia do dia anterior que falava de um ministro do atual Governo. Afivela uma cara de quem vai dar o melhor conselho deste e de outros mundos e dispara para o petiz que, empertigado na sua decisão, espera uma resposta:
– Ouve meu lindo, qual cirurgião qual carapuça, tu vais é machetear…
A isto o petiz arregala os olhos e, com ar de uma ignorância do tamanho do mundo, pergunta:
– Mach… quê?!!!…
E o leitor, progenitor compreensivo com isto do crescimento dos pequenos, levanta-se, ajeita o petiz nos joelhos e dispõe-se a dar-lhe algo assim como uma lição de vida.
– Sabes, meu filho, isto da vida tem muito que se lhe diga. Anda um cristão a queimar as pestanas ou a criar calos nas mão e vai-se a ver, no final, tem uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. Bem podes tu ser o melhor cirurgião do planeta que o que te espera é trabalho e mais trabalho. Isto para, quando a idade da reforma, se ainda existir tal palavra, se aproximar te darem algo como um prato de lentilhas apregoando aos quatro ventos que é um favor que te estão a fazer. E mesmo depois, mesmo com uma reforma ridícula, correrás sempre o perigo de a veres minguar na justa medida em que aumentam vencimentos e reformas de uma série de nababos que, em devido tempo, souberam acautelar os seus interesses.
Sabes, meu filho, o que de melhor poderás fazer por ti é tratares de ter uns quantos empregos, nem que seja a biscates. Depois, quando a reforma estiver à porta, não te esqueceres de todos os que fizeste e mais daqueles que amigos te arranjarem, e fazeres assim como que uma coleção delas. É que, com tanta experiência acumulada, ainda te hão de convidar para ministro de uma pasta qualquer. Claro que então tu te esquecerás, macheteando, de incluir as que entenderes no teu currículo público. Também, quem é que tem a ver com isso, com a tua vida privada?… Se conseguiste foi porque te relacionaste bem com a tua profissão e com os amigos no sítio e hora certos, ora essa!… Cambada de coscuvilheiros, pá!…
Perante todo este arrazoado, o petiz, com cara de quem acaba de ouvir a maior das mentiras, pergunta:
– Mas pai, não foste tu que me andaste anos a repetir que um homem pode perder tudo na vida menos a sua honra?!!!…
(…)
Por: Norberto Gonçalves