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Estupidez e Cobardia

Torna-se cada vez mais claro que o governo tem uma estratégia para sair da crise e que esta passa por aumentos de impostos sobre o trabalho e pela redução de salários e pensões. A vantagem desta estratégia é que os destinatários das políticas que a concretizam não têm como fugir-lhe. Outra coisa seria, por exemplo, taxar as empresas que enriquecem à nossa custa com as parcerias público-privadas e os swaps, ou até, em último recurso, nacionalizá-las. Outra maneira seria começar a emagrecer o Estado e as empresas públicas, expurgando-os dos milhares de militantes que aí encontraram guarida em agradecimento pelo seu especial talento a colar cartazes. Outra ainda seria denunciar, por incumprimento, contratos ruinosos como o dos submarinos. Poderiam ainda reorganizar-se os serviços públicos, para torná-los mais eficientes e baratos, transferindo funcionários de sítios onde se acotovelam uns aos outros para outros onde fazem falta.

Mas não, é mais fácil descontar nas reformas e espoliar velhos e viúvas. Diz-nos agora Paulo Portas, a propósito dos descontos nas pensões de sobrevivência, que apenas serão afectados 25.000 beneficiários. Disseram-nos ainda, antes dos esclarecimentos do ministro, que com essas reduções se irão poupar cerca de cem milhões de euros por ano. Isto implica, como já alguém disse, um desconto de €4.000,00 em média, por pensionista e por ano, no grupo afectado. Têm a certeza de que fizeram bem as contas?

Outra questão é se pensaram bem no que isto implica em sede de pura justiça, e se é justo aplicar descontos não previstos nessas pensões e nas pensões de reforma em geral. Aqui convém fazer um parêntesis. O nosso sistema de segurança social não é de capitalização e ninguém desconta o suficiente para pagar as reformas que espera vir a receber: se alguém, ganhando €1.000,00 por mês, descontar para uma conta só sua 11% do seu salário durante 40 anos, e se a esse desconto for acrescido o desconto obrigatório da sua entidade patronal, irá acumular descontos suficientes para pouco mais de quinze anos de reforma – e a verdade é que a esperança média de vida aos 65 anos já é em Portugal superior a isso (não esqueçamos também os muitos que se reformam antes). Se pensarmos que desses descontos saem outros benefícios, como os subsídios de desemprego ou doença, comparticipação para o Fundo de Garantia Salarial, abono de família, subsídio de funeral e outros, é fácil ver que o sistema é por natureza deficitário. E se nos lembrarmos que o número dos que descontam tem vindo a diminuir enquanto aumenta o número dos que recebem, então só podemos ficar assustados. Tudo isto é verdade e tem de ser enfrentado, mas não assim.

É que, falando da justiça das medidas que têm afectado as pensões de reforma, a aplicação das novas regras nos termos impostos pelo governo equivale à aplicação de um imposto retroactivo. As pessoas que vão ver diminuída a sua pensão de sobrevivência ou a sua reforma estão especialmente vulneráveis, quer por estarem muitas delas em idade avançada, quer porque perderam o seu cônjuge, quer porque a sua saúde se vai (dispendiosamente) degradando. Planearam a sua vida contando com esse rendimento e contando que não seria diminuído. Se as tivessem prevenido a tempo do que lhes preparavam, teriam feito mais poupanças, teriam até subscrito seguros de capitalização, ou teriam pelo menos essa opção. São ainda por cima pessoas que não conseguirão reentrar no mercado de trabalho para compensar o rendimento de que agora se vêem privadas e que precisam dele para os encargos do final da sua vida: quantos idosos não entregam a maior parte do seu rendimento, ou todo ele, a um lar?

Por isso, mesmo aceitando que as regras terão de ser mudadas, mais tarde ou mais cedo, por exemplo partindo para um sistema puro e duro de capitalização, ou para um sistema misto, teremos de o fazer gradualmente e respeitando as expectativas que foram criadas a quem já se reformou e não pode voltar atrás. A decisão agora tomada, associada às outras já tomadas nos últimos anos, merece repugnância pela sua insensibilidade, estupidez e cobardia. Infelizmente, a coisa não vai ficar por aqui.

Por: António Ferreira

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