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Vindimário

1. A “Campanha Alegre” que tem agitado o país desde há 8 dias tem revelado alguns dados novos e que convém, ainda que a talhe de foice, enumerar: a) A profusão de candidaturas independentes, concorrentes a 92 câmaras e 1014 freguesias. Embora se registe com agrado a magnitude cívica destes dados, aumentando-se a focagem, nota-se que a propalada independência tem outros atributos menos sonantes. E que, não constitui, só por si, nenhum certificado de qualidade. A candidatura de Rui Moreira, no Porto, é uma feliz excepção. Só possível numa cidade onde uma sólida tradição comercial de “contas feitas” torna possível a erupção de alternativas fundadas no bom senso, destemor e autonomia cívica, atributos associados ao liberalismo. Ora, a pergunta que faz sentido para quem vive na Guarda, ou noutro qualquer concelho do interior, é: embora sem questionar a necessidade, existe realmente “espaço” para candidaturas à margem dos partidos? É conhecida a promiscuidade entre a vida pública e os negócios privados na esmagadora maioria das autarquias do país. Assim como a finissecular teia de dependências criadas com recursos públicos, mas cuja distribuição é gerida politicamente e cujo “retorno” é relembrado na hora da verdade. No caso guardense, podem as candidaturas independentes queixar-se da desigual exigência da lei face às candidaturas partidárias. Pode até uma delas, “A Guarda Primeiro”, invocar a seu favor o basismo e a proximidade demonstrados durante a pré-campanha. Mas a questão de fundo, atrás referida, permanece. b) A atomização da eleição. Ou seja, pela primeira vez, as autárquicas aparecem, nos média e, de forma velada, nas instâncias políticas, sobretudo nos partidos do poder e no BE, como assuntos locais, com escassa relevância nacional. Como quem diz: “façam o vosso trabalhinho aí na merdaleja. Se ganharem, viremos reclamar os louros. Caso contrário, logo aí vamos comer umas febras.” Claro que as eleições locais sempre constituíram um mundo à parte no panorama político. Um universo onde a proximidade cria, destrói e refaz fidelidades, alberga contradições e paradoxos, ocorrências unicamente explicáveis num microcosmo onde o anonimato é quase impossível. É o retorno de facto a um certo comunitarismo primevo, aos vizinhos dos concelhos medievais, na sua austera, calorosa e personalizada simplicidade. Só que agora, em vez de “homens-bons”, a escolha é entre um naipe viciado de mediadores de bons ofícios e subsidiação avulsa. Ora, o simples tacticismo não explica o mencionado desinteresse calculado na sua totalidade. Certamente a implosão cívica resultante de dois anos de austeridade ajudará à festa. Durante três semanas, com uma via aberta para se manifestar na sua tumultuosa e festiva impotência.

2. Uma das coisas que, para além da estupefacção, me causa maior mal-estar é quando alguém, que antes usava de toda a cordialidade e civilidade connosco, passa a evitar e a ser ostensivamente esquivo, do tipo “a falar por favor”. E isto, é importante referir, não é uma simples impressão circunstancial,  mas um facto repetido e inequívoco. E, sobretudo, sem razão plausível, por muito  que me esforce ou tente descortinar. É que, se ela existisse, por muito rebuscada que fosse, ainda tentaria esclarecer o assunto. Ainda tentaria, escudado numa explicação, ir directo ao assunto e, se possível, transformá-lo num simples e benévolo mal-entendido. Mas, e se não houver tal justificação? E se o absurdo só tem equivalente na pura arbitrariedade da situação criada? Então começa o desfilar das dúvidas. O que é que a tal pessoa viu que eu não vi? O que é que ela imagina que sabe que eu não sei? Não seria melhor perguntar-lhe directamente? O rol de questões é teoricamente infinito. Só que, na prática, acaba ao fim de alguns minutos. Permanecendo então a ligeira inquietação de um mistério por resolver. Até que, um dia, alguém nos diz que lhe sucedeu exactamente o mesmo, com a mesma pessoa que me havia evitado, ou com outra qualquer. Todavia, o mais verosímil, concluirei, será aceitar que este exercício só demonstra que a realidade é o que é: uma multiplicidade de causas e efeitos que se cruzam, sem razão e sem destino. E que, se o episódio relatado me perturba assim tanto, é porque certamente já fiz o mesmo, alguma vez, noutras circunstâncias, e nunca o soube. Até que alguém, que nunca imaginará como nem porquê, me veio devolver a memória de uma desatenção…

Por: António Godinho Gil

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