Os chocalhos bradavam em jeito de desafio, sincronizados e barulhentos, à medida que os chocalheiros de Vila Verde de Ficalho (Serpa) guiavam o rebanho, que tinha começado a sua jornada em Fernão Joanes (Guarda), e “invadiam” a aldeia de Famalicão, no sábado.
Meia dúzia de pessoas acompanharam as ovelhas na descida até à povoação, onde os populares se foram juntando ao grupo até à saída da freguesia. O passeio deveria ter terminado em Valhelhas, mas foi encurtado devido ao calor.
Assim arrancou o primeiro dia da Festa da Transumância, atividade que visa homenagear os pastores da pequena freguesia de Fernão Joanes. A tradição voltou a cumprir-se no passado fim-de-semana, com a festa da transumância mais antiga da região a celebrar a cultura pastoril, que ainda marca o quotidiano de várias famílias da aldeia. «Trata-se de um festival pioneiro no país», reitera António Bico, presidente da direção da Associação Cultural e Recreativa local, sublinhando que «o evento evoluiu ao longo destes anos e há sempre novidades».
Este ano a animação desceu até ao centro da aldeia, isto depois de há um ano as eiras, zona de abrigo dos animais, terem sido o “palco” privilegiado. «Apostámos num novo modelo que esperamos desenvolver nos próximos anos, em que se realiza tudo aqui, com um momento alto nas eiras», adianta o responsável. Já há 17 anos que a freguesia lembra os seus pastores, sendo que a música, a memória e a criatividade são presença assídua nas diversas iniciativas, como os enfeites das ovelhas, o almoço pastoril ou as atuações musicais.
«Tenho pena que isto se esteja a perder»
Entre aventuras e desventuras, todos os pastores de Fernão Joanes têm histórias para contar: Joaquim Vendeiro, de 65 anos, é disso exemplo. Emigrado em França há largas décadas, o reformado não troca o rebanho por nada. «Passo aqui três ou quatro meses de férias, depende, e quando aqui chego deixo de ir à praia para me dedicar a isto», disse Joaquim Vendeiro a O INTERIOR.
É com as ovelhas dos irmãos que “mata” as saudades de outros tempos, quando a sua rotina era marcada pelas lides de pastor. «É a profissão de que mais gosto, ainda há pouco tempo parti três costelas mas continuo, não quero repousar», frisa. O emigrante trabalhou numa fábrica de lanifícios, nas obras e tirou o curso de cozinheiro; contudo, nunca largou a dedicação e a «amizade» aos animais: «Ser pastor tem muito que se lhe diga, as ovelhas querem carinho como querem as pessoas», defende. O passado conta-se com muitas noites sem dormir e várias horas dedicadas ao rebanho, o que o enche de orgulho: «As minhas ovelhas não “baixavam” a barriga», lembra.
«Tenho pena que isto se esteja a perder», lamenta Joaquim Vendeiro, salientado que «a juventude podia dedicar-se a isto, não dá para enriquecer mas dá para viver». No entanto, o reformado acredita que o Governo tem vindo a retirar liberdade aos pastores: «Os jovens são livres para trabalhar mas não para fazerem o que querem daquilo que é deles», critica o pastor, referindo que «hoje há guias, não podemos matar uma ovelha sem autorização… É muito complicado», considera. Ainda assim, o emigrante garante que vai continuar a dedicar muitos dias ao rebanho, pelo menos sempre que regressar à aldeia onde nasceu.
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Sara Quelhas