1. A confirmação pelo Tribunal Constitucional da exclusão de todas as listas do movimento “A Guarda Primeiro” e das listas à Assembleia Municipal e Câmara do movimento “Juntos pela Guarda” das próximas eleições autárquicas não surpreendeu, após a decisão do Tribunal da Guarda, mas permite-nos questionar o sistema eleitoral. Desde logo, e no pressuposto constitucional de que todos têm direito a eleger e a ser eleitos, conclui-se que esse direito só pode ser “facilmente” exercido quando se é membro de um partido. Quem não militar na partidocracia tem dificuldades redobradas: recolha de assinaturas de acordo com a fórmula inscrita na lei, esforço por antecipado na organização, preparação e promoção da candidatura e, depois dos formalismos cumpridos, ainda terá outras formas de dificuldade própria de quem não tem atrás uma organização, por muito pequena que ela seja. Em síntese, quando passou a ser possível a candidatura de independentes às autarquias locais (Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de agosto), o regimento definido e aprovado em Assembleia da República (pelos deputados eleitos por partidos) abriu as portas à possibilidade de eleger grupos de cidadãos independentes, mas manteve o ferrolho apertado a essa possibilidade através de uma fórmula restritiva que passa pela necessidade de ter uma grande quantidade de subscritores (número de eleitores da autarquia a dividir por três vezes o número de membros do órgão) e de antecipadamente estarem definidas as listas de candidatos, o nome da candidatura e o mandatário da mesma, nomeadamente. Assim, ainda a procissão não está no adro e já toda a gente tem de saber o nome de todos os santos, as cores do andor e quem os carrega… enquanto isso, os partidos, calmamente ainda podem andar a discutir quem é que vai à frente da procissão (e foi isso que confirmou o acórdão do Constitucional). A Democracia é, pois, uma coisa de partidos. E quando um grupo de cidadãos, independentemente das motivações, quer intervir politicamente e protagonizar um projeto alternativo tem de pactuar com as regras decretadas pelos partidos e cumprir todos os requisitos de que os partidos estão dispensados.
Como se tudo isto fosse pouco, o Tribunal Constitucional esperou até ao último dia antes do início da campanha para divulgar o acórdão sobre os recursos apresentados pelos grupos de cidadãos à decisão dos tribunais das respetivas comarcas. Isto duas semanas depois de o mesmo Tribunal ter resolvido atempadamente o imbróglio dos candidatos eleitos para três mandatos.
2. Com a exclusão da candidatura de Virgílio Bento todos os cenários até agora comentados estão errados. É extemporâneo procurar perceber para qual dos dois blocos partidários irá pender o apoio dos que agora se sentem defraudados pelas exigências do sistema partidário, mas percebe-se que, num primeiro momento, existe uma propensão para optar pelo voto em branco como forma de protesto. O PSD, que tem procurado cavalgar uma inédita onda vitoriosa, procura cimentar a sua inocência em todo o processo para assim atrair novos eleitores (ou velhos votantes que tinham renegado o candidato do partido); o PS eleva a voz em nome da legalidade e do estrito cumprimento das regras, enquanto espera que com o passar dos dias as ovelhas tresmalhadas que fugiram com Bento regressem ao campo rosa que de quatro em quatro anos suporta as vitórias socialistas.
3. Para além das futilidades e das dúvidas sobre a legalidade das candidaturas, a campanha, na Guarda, ainda não teve nada de entusiasmante. Não se defenderam soluções para os problemas financeiros da câmara ou para o desenvolvimento económico e social do concelho, em concreto, nem surgiram ideias novas ou projetos inovadores, não se apresentaram dinâmicas para se desencravar o concelho, nem sugestões ambiciosas para o futuro dos guardenses – quase nada se ouviu. Mas houve de facto uma forma diferente de querer intervir na comunidade: o movimento “A Guarda Primeiro” procurou ouvir as pessoas, conhecer a realidade e aproximar a política dos cidadãos. E essa é a grande mutação com a rejeição das suas listas: agora quem é que vai discutir os problemas e as dificuldades das pessoas? Quem é que vai ouvir e sentir os cidadãos? Quem é que vai estar preocupado em conhecer de perto as necessidades dos habitantes? A campanha fica órfã desse debate, desse diagnóstico, dessa vivência e dessa introspeção social e cultural.
Os partidos podem trazer ilustres convidados, mas nenhum deles denunciará os problemas do concelho melhor do que quem cá vive; nenhum apontará caminhos para a Guarda melhor do que aqueles que todos os dias pensam a cidade e dificilmente algum poderá ajudar desinteressadamente o concelho como aqueles que aqui trabalham e resistem. Excluídos pelo formalismo da lei, Virgílio Bento e Manuel Rodrigues podem congratular-se pelas pessoas que envolveram, pelos notáveis que juntaram à sua volta, por terem posto a Guarda a discutir os seus problemas, por terem promovido uma dimensão cívica quase desconhecida no concelho e por terem contribuído para aproximar pessoas e políticas divergentes. Devem procurar capitalizar tal dinâmica noutra dimensão política de intervenção e opinião pública.
Luis Baptista-Martins