1. O ofício de ter uma opinião e de a publicar todas as semanas pode ser visto como um privilégio ou como um risco. Para quem está de fora, será provavelmente um privilégio. Para quem está dentro, mais depressa se tornará num risco: existe, contra quem escreve nos jornais, uma suspeita instintiva sobre a essência legítima daquilo que pensa; e uma propensão débil para catalogar as ideias expressas em função de pretensos constrangimentos, de supostas dependências ou afigurados obséquios. Criticar não é tão fácil como se julga. É bastante mais simples discorrer sobre temas como o cultivo da beterraba sacarina em meio hídrico não alcalino, remetendo para citações e notas de pé de página tudo o que se afigure ambíguo. Dá-nos ares de ilustração, não nos compromete e põe-nos de bem com todos. Oitenta por cento, ou mais, daquilo que pensei em público neste «Jogo de Sombras» foram críticas. Já me têm perguntado se eu não acho que nada esteja bem. Não é isso. É, digamos, uma tineta que tenho contra a ideia dócil de que a vida é a feijões. A função de um colunista de opinião é mesmo essa: ter opinião. Há um contrato de honra implícito entre quem lê e quem escreve que não consente a fuga ao risco de ter posições impopulares, de manifestar convicções politicamente incorrectas, de pôr nomes às coisas, de não ficar pela linguagem trivial ou inócua, de não ceder aos brandos hábitos. E digo mais: entre a tentação do silêncio, que é própria dos poderes, e a tentação do exagero, que não tenho problemas em reconhecer que é própria da imprensa (por uma multiplicidade de factores indirectos, desde ausência de tempo à insuficiência de fontes), prefiro claramente a segunda. É mais grave para a saúde pública – entenda-se saúde do regime – que os jornais fiquem, coagidos por cautelas várias, aquém da função de denúncia que lhes cabe, do que vão além dela, mesmo que corram o mais humano dos riscos: o de se enganarem. O princípio fundamental é que nada disto seja feito com leviandade ou má fé. Por isso o direito à informação e o direito à crítica devem estar constantemente sob vigilância, a começar por aquela que é a mais necessária de todas: a dos próprios agentes desses direitos. Ou, quando inevitável, a dos tribunais. Isto vem a propósito de uma frase que escrevi há um ano: «Os acontecimentos do Centro da Área Educativa da Guarda são absolutamente lamentáveis. A começar pelo facto de não se tratar de Acontecimentos do Centro da Área Educativa da Guarda. São, isso sim, os da gente sem ética nem preparação para dirigir um serviço público». Um dos visados, que dias antes tinha sido exonerado das funções de coordenador do serviço, fez queixa-crime três-em-uma contra «O Interior», em que me incluiu por causa desta frase. O Ministério Público decidiu agora arquivar o inquérito. Não devo, como parte visada e formalmente notificada, citar em público o despacho nesta fase (isso faria de mim um perigoso violador do segredo de Justiça). Mas suponhamos que um incerto magistrado, num qualquer tribunal, ao analisar uma queixa por abuso de liberdade de imprensa, tivesse considerado que a comodidade de uma nomeação política não tem que invalidar a incomodidade de enfrentar os críticos, os jornalistas e os opinion-makers, que são quem está mais preparado para intervir junto da opinião pública, provocando nela a reflexão necessária sobre a actuação dos agentes políticos. Ou admitamos que concluísse que criticar um titular de um cargo público nas suas funções jamais representará uma ofensa à honra e ao bom-nome individual da pessoa. Ou que, parafraseando Harry Truman, escrevesse: “Quem não tiver resistência ao calor, não pode aceitar trabalhar na cozinha!”. Ou que, citando o adágio, sugerisse: “Quem anda à chuva, molha-se!”. Presumamos que um magistrado do Ministério Público, em alguma secção do Tribunal da Guarda, tivesse feito considerações como esta para fundamentar o arquivamento de uma queixa de um político contra jornalistas. Nos tempos que correm, seria um feito de grande arrojo. Não tanto pelo triunfo dos denunciados. Mas pela vitória do sistema.
2. Quase cometia a ofensa de não lamentar a morte do jogador do Benfica, Miklos Fehér. Lamento. Lamento porque era um atleta jovem, promissor – e dizem que afável, ordeiro e provido de um invulgar sentido desportivo. E não lamento por mais nada. Espero que a tragédia sirva ao menos para agitar as consciências: pelos esforços sobre-humanos a que são sujeitos os atletas de alta competição, pela falta de meios de segurança e emergência nos recintos desportivos (sem se olhar só para os dez estádios novos), pelas fragilidades à vista num país que vai receber um campeonato europeu de futebol. Se a discussão fosse esta, a memória de um atleta tombado em campo estaria a ser honrada. Mas não. Desde Domingo à noite que «a dor nacional», «a nação unida», «o país a uma só cor», o «sofrimento de um povo» e outras expressões de mau gosto têm pontificado no voyeurismo das desmedidas transmissões televisivas, como se não se estivesse a passar mais nada. Isto já não é pesar – é náusea. Timor deu o que tinha a dar. Amália foi sepultada duas vezes. Este país não vive sem o fado do desgraçadinho.
Por: Rui Isidro