A ronda foi proveitosa pelos lugares do Jarmelo e vai dar lugar terça-feira a um espectáculo de música tradicional no auditório municipal da Guarda. O projecto tomou-lhe o nome e apresenta-se de voz afinada para a estreia com um repertório de 15 canções que evocam a vida do campo, os serões de antanho, contam histórias imaginadas, narram acontecimentos trágicos e invulgares, sem esquecer os assuntos do dia-a-dia de uma comunidade repartida pela meia dúzia de terras do Jarmelo ou as idas à famosa feira. A “Ronda do Jarmelo” chega à Guarda não para pedir as Janeiras, mas para revelar um património musical escondido na memória das suas gentes.
O projecto da Associação Cultural e Desportiva local nasceu no âmbito do programa “Emergências”, promovido pela autarquia guardense para potenciar o surgimento de novas propostas culturais nas freguesias do concelho da Guarda. O que no Jarmelo se traduziu num grupo vocal composto por 24 elementos, a grande maioria dos quais já de provecta idade, que canta as cantigas tradicionais daquela zona do concelho guardense. «Não há temas originais nem músicos, só cantadores», explicita Isidro Almeida, um dos responsáveis da colectividade, realçando ainda o domínio das mulheres no grupo e a escassez de jovens, que apareceram «quase por convite». Um sinal dos tempos numa localidade envelhecida e em vias de desertificação, onde os idosos ainda são um património cultural e de memórias valioso para todo um povo que a História votou a séculos de amargura. Foi nesse repositório vivo que os dirigentes da colectividade encontraram uma espécie de banda sonora do Jarmelo, inventariando e registando mais de 50 temas populares, despertados numa ronda pelas aldeias das redondezas levada a cabo por Agostinho da Silva, outro responsável da associação, e o músico César Prata –autor dos arranjos e readaptações – em Julho e Agosto últimos. «Este espectáculo de estreia é o melhor e o mais representativo dessa recolha», garante Isidro Almeida, que estranha não terem sido encontradas canções sobre as lendas e a funesta história do Jarmelo.
Fatalidades à parte, as músicas ora recuperadas já são pouco cantadas pelas gentes da freguesia, embora tenha sido contactado um grupo de mulheres que se tem dedicado a preservar alguns temas tradicionais cantando-os periodicamente. De resto, os indagadores foram confrontados com várias versões da mesma música nas diversas localidades visitadas, situação que obrigou a «alguns ajustamentos», explica o dirigente. Outra inovação prende-se com o facto do grupo se apresentar em palco com poucos instrumentos, convocados apenas para marcar o ritmo ou criar ambientes. É o caso com o recurso à bigorna, garrafas, tesoura de tosquia, pandeiretas ou à harmónica e a um misterioso “jarmelino”, uma espécie de fazedor de sons. Entretanto, ciente da importância deste património, a Associação Cultural e Desportiva do Jarmelo pretende agora gravar em CD os 15 temas seleccionados para a estreia e assim preservar para «a posteridade» um património que tende a cair no esquecimento. O mesmo deverá acontecer às restantes canções trazidas para a luz do dia graças a esta ronda, que estão transcritas e guardadas para um futuro melhor, porque ser do Jarmelo ainda tem muito significado.
O Jarmelo ficou na História devido à tragédia medieval dos amores de Pedro e Inês. Com foral de D. Afonso Henriques, actualizado por D. Manuel, a localidade foi arrasada em 1357 por ordem de D. Pedro, tendo-se extinguido enquanto concelho em 1855. Duas fatalidades que marcaram para sempre o local, transformado em ermo com o correr do tempo, embora persista a originalidade do Jarmelo ter mantido uma «unidade administrativa» virtual ao longo destes 800 anos, segundo a qual ser do Jarmelo é cada vez mais um regionalismo. Uma ideia defendida por Agostinho da Silva nos últimos anos.
Luis Martins