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O fim da soberania II

Theatrum Mundi

Numa reunião do seu partido, no estado alemão da Pomerânia do Norte-Mecklemburgo, a chanceler alemã Angela Merkel instou os europeus a mais 5 anos de austeridade para sair da crise. Há quem diga que foi um descuido, que foi apanhada em falso, que foi apanhada na contradição do seu discurso interno face ao discurso externo. Que a chanceler se esqueceu de que, mesmo numa reunião de partido, a Europa está sempre atenta às suas palavras. Dificilmente terá sido o caso, e pouco a pouco a chanceler Merkel vai-se tornando a primeira verdadeira dirigente política europeia. É um pouco irónico, e ao mesmo tempo inevitável, que a crise venha a acelerar o processo de criação de um espaço público europeu, um fenómeno que nem a azáfama dos debates sobre a Constituição europeia conseguiu consolidar nos primeiros anos do novo século. O que também há de inevitável na crise é que ela esteja a aprofundar as fraturas internas no espaço europeu e a tornar mais óbvio quem manda e quem obedece sem remissão.

A crise e os planos de resgate da Grécia, Irlanda e Portugal fizeram mais pelo federalismo do que intermináveis discussões sobre os méritos e a necessidade do modelo, e demonstram já que ele não revela amanhãs que cantam mas, ao contrário, pode ser um processo custoso, cheio de tensões e vítimas. Teóricos e políticos habituaram-se a discutir o federalismo na Europa como um processo para lá do fim da História, para lá dos sofrimentos próprios do processo histórico e do conflito de interesses entre estados. Os europeus aderiram muito mais profundamente ao vaticínio de Fukuyama do que os norte-americanos, que viram a História regressar tragicamente a onze de setembro de 2001 e desde então estão em guerra. Na Europa, o federalismo seria a longa caminhada da modernidade e do progresso inelutáveis, da solidariedade e do hino da alegria. Teóricos e políticos acharam compatível a marcha para o federalismo e falar em nome dos interesses do estado nacional soberano esquecendo que, na América do Norte, a contradição só foi resolvida pela guerra.

A chanceler Merkel sabe que, de facto, não é só a chanceler da Alemanha; ela já é a chanceler da Europa. Por isso, quando discursa numa reunião partidária na Pomerânia do Norte-Mecklemburgo ela discursa para a Europa e comunica o seu programa político e económico a toda a Europa. Podem esbracejar e ironizar que esse programa não passa de uma mera punição calvinista em nome da Alemanha puritana e virtuosa, mas ao fazer dela o garante dos resgates europeus, o acelerar da crise transformou radicalmente a estrutura de poder europeu. A Comissão europeia esfumou-se e Durão Barroso arrasta-se num segundo mandato sem significado e sem intervenção de peso na solução da crise. Por toda a Europa, a esperança ora recai na capacidade de um Holande, Monti ou Draghi de demoverem Merkel da sua fixação de austeridade ou de que, dentro da própria Alemanha, sociais-democratas e verdes consigam recuperar o poder e congeminem finalmente um plano diferente para o saneamento da Europa.

Quando a chanceler Merkel se deslocar a Portugal, dentro de dias, ela virá entronizada e representará quem manda, de facto, na Europa. As suas palavras serão ouvidas ao pormenor e os comentadores de serviço não a pouparão por não falar diretamente ao povo português, por não mostrar compaixão pelos sacrifícios feitos por todos, enfim, por não anunciar o fim da crise. O governo regional português pronunciará palavras de circunstância e apreço e os manifestantes gritarão palavras de ordem e escreverão “Merkel = fome” nas paredes e muros de Lisboa. Todos vislumbrando a chanceler como a sede do verdadeiro poder. Vem aí o federalismo, com o seu cortejo de vencedores e vencidos, tensões e paradoxos.

Por: Marcos Farias Ferreira

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