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Brumário

1. Logo no início da década de 90, comecei a dar conta da singular “prosperidade” que iria tomar conta do país. Medida pelas taxas de juros baixas e crédito fácil, profusão de apoios comunitários a fundo perdido, muitos deles usados para sustentar e enriquecer parte da classe político-partidária e clientelas adjacentes, consumo desmedido, despovoamento do interior e liquidação da ruralidade, obras públicas faraónicas, promovidas pelo poder central, regional e local, um suave rotativismo do poder, facilitismo no ensino, bodo aos pobres no caso de reivindicações corporativas, consolidação da partidocracia, com a sua corte de vícios e corrupção, liquidação dos sectores produtivos da economia, aumento assustador da dívida pública, e muito mais. Em suma, queríamos “viver como os alemães e os dinamarqueses”, embora produzindo 1/10 deles. Ou seja, um país pobre, mas com muitos ricos. Com ou sem aspas. Percebi imediatamente que o Big Bang apocalíptico não demoraria.. E assim veio a acontecer, após a bolha do imobiliário em 2008. O que originou o recurso a algumas medidas de ajustamento, consubstanciadas nos célebres PEC do governo Sócrates. Os quais se revelaram claramente insuficientes, pois nada se fez relativamente à verdadeira despesa pública. Tal como agora. Após a assinatura do célebre programa de assistência financeira a Portugal, sob as instâncias da troika, coube ao actual governo a execução das medidas de ajustamento aí previstas. Embora não ignorasse a amplitude e a extensão dos sacrifícios exigidos aos cidadãos e empresas, nunca duvidei da sua necessidade. Incluindo as reformas estruturais, de que a legislação laboral é exemplo maior. Para tanto, basta olhar para os números da dívida: 200 mil milhões de euros! Tudo isto apesar do amadorismo e subserviência muitas vezes revelados pelos membros do Governo, incluindo o PM. Entretanto, o anúncio da subida das taxas da TSU e a iniquidade da sua repartição foram a causa directa dos protestos públicos iniciados a partir da jornada de 15 de Setembro. Os quais evidenciaram um despertar cívico notável por parte de muitos cidadãos arredados do “ labor” político e da sociedade civil em geral. A essas acções logo se colaram, sem qualquer pudor, velhas glórias do PS, co-responsáveis pela situação que vivemos, o inevitável PCP e, sobretudo, forças manipuladas a partir do BE, que reclamaram a parte do leão nos dividendos das manifestações. Embora protestos mais sonantes fossem devidos à percepção do empobrecimento e diminuição das prestações públicas, não deixou de se ouvir quem pusesse em causa o sistema político no seu todo. Ou seja, a partidocracia, a falência de uma sistema que não se aperfeiçoou, a própria noção de representatividade, a corrupção impune, etc. Ainda esperei que a dimensão dos protestos fizesse não só recuar o Governo relativamente às últimas medidas anunciadas, como o despertasse para a realidade de um país que corre o risco de sufocar por estrangulamento. Mas não foi isso que aconteceu. Na sua ânsia de liquidez, limitou-se a usar novo expediente para agravar ainda mais a a carga fiscal. Ou seja, a juntar ao vergonhoso aumento do IMI, lançou mão do aumento do IRS, através do agravamento das taxas, novos escalões e diminuição dos benefícios e isenções. E com isso não poupando ninguém, sobretudo os que possuem rendimentos mais baixos. Trata-se, grosso modo, do esbulho dos contribuintes, semelhante ao de um vulgar senhor feudal aos seus vassalos. Tive imediatamente a noção que o Governo estava ditar a sentença de morte da já frágil economia, ao liquidar as hipóteses de criação de emprego e provocar a diminuição drástica do consumo. E que, ao ter tomado esta decisão, o Governo fez uma opção, ao escolher  a via do confisco generalizado, da depredação fiscal. Portanto, não mais terá a minha confiança. Ora, tanto quanto sei, o mandato que recebeu do eleitorado não inclui as funções de liquidatário da nação. Embora ninguém o admita, mas muitos o sintam, o país vive em estado de sítio. Cabe-nos a nós tirá-lo de lá…

D. Januário Torgal voltou a atacar. O conhecido major-general do exército (que nunca marchou mais do que dez metros, nem fez ordem unida mais do que 5 minutos, é bom lembrar) mostra a sua indignação diante dos “vendilhões do templo”. Desta vez, não esteve com meias palavras e zás, toca a chamar de “salazaristas” os nossos governantes. O uso de tamanho epíteto tem efeito garantido, ainda que a sua generalização diga mais de quem o utiliza do que os visados. Mas adiante. Pois sua eminência usa tamanho palavrão, só porque achou inconveniente a referência do Ministro das Finanças à bondade do povo português, na linha do estoicismo heróico apontado pelo PM uns dias antes. Ironia fina, é claro. Mas que merecia outro tratamento. Ora, sendo a resignação e a pobreza qualidades máximas do cristianismo, não deveria antes D. Januário aplaudir estas alusões? E que dizer da “linguagem prudencial” que ele aponta como atributo do Governo? Será que sua eminência incluiu nas suas leituras recentes o grandioso “A Arte da Prudência”, de Baltasar Gracián? Ou não será mesmo verdade que o bom povo português sempre preferiu ser pastoreado, delegar em “dois ou três” que são bons de mando e assim decidem sempre em seu lugar?

Por: antónio Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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