A palavra “cábula” está definitivamente fora de moda e dificilmente se enquadra num sistema de ensino compreensivo e integrador como o atual, que tem respostas supostamente para tudo. No meu tempo de estudante do secundário (anos 70), ela marcava bem o aluno que com desleixo ou desinteresse não ligava aos estudos, carregando assim um estigma culpabilizante frente aos professores e aos pais, que “faziam sacrifícios” para o ter a estudar. Mas a ideia da preguiça inerente à palavra não significava necessariamente o que mais tarde se passou a chamar um “mau aluno” ou um “calão”, termos estes mais ofensivos ainda, quase a indicar que o aluno não aprendia “de propósito” ou desenvolvia maus comportamentos na turma.
Pode um aluno não aprender de propósito? Perante a gravidade desta afirmação, o que podemos dizer é que a escola não é nesse aspeto diferente das outras instituições que integram indivíduos. Como professor, conheço alunos que carregam há anos o peso do insucesso que lhes está marcado na pele, não sendo a escola capaz de provocar neles qualquer inversão. Isto em alunos dóceis, quanto mais em alunos revoltados ou rebeldes. Carrego como outros professores as reações frias e já acomodadas de certos alunos cujos resultados dececionantes não levantam neles a mínima reação no momento da entrega de um teste. Como se aquilo fosse “normal”. Daniel Pennac, em “Mágoas da Escola”, retrato do seu percurso escolar de adolescente, também ele dececionante, aponta assim as características do cábula: “perda de confiança em si próprio, renúncia ao esforço, incapacidade de concentração, distração, mitomania, constituição de bandos marginais, por vezes álcool, às vezes drogas também”. E em casos mais extremos, a perda de sentido da realidade ou de consciência moral. Mas atrevermo-nos a dizer que alguém não quer aprender “de propósito” significa sobretudo uma “boa desculpa” diante da incapacidade de “compreendermos uma parcela daquilo que nos rodeia”. Quando olhamos os animais em grupo, compreendemos melhor os grupos de jovens (ex. turmas), muitas vezes atentos a tudo e a nada e numa disputa difícil consigo próprios (os cachorros também correm atrás de tudo o que mexe), outras vezes em atos reprováveis que nascem da sua afirmação nos grupos cujas regras cumprem (como a matilha de cães furiosos que correm atrás do que foge, caindo-lhe em cima implacavelmente).
Então perguntar-se-á: Pennac, aluno cábula, não chegou afinal a professor e escritor prestigiado? E como é que lá chegou sendo cábula? O escritor responde que, para além da ideia de que as coisas vêm “a seu tempo”, que alguns jovens amadurecem “mais tarde” não se integrando facilmente na escola, houve3 ou 4 professores que o marcaram e que, mesmo heterodoxamente relativamente aos programas estabelecidos para toda a gente, conseguiram que ele furasse um caminho e acreditasse nesse caminho (no seu caso à volta da escrita). Professores que mantinham na aula uma presença forte, segura ou encorajante, que não se deixavam impressionar pelas confissões de ignorância dos alunos. Professores que tinham um estilo, uma certa maneira de comunicar, que não abdicavam de “comunicar”, que não depreciavam a turma ou a ridicularizavam. Finalmente, reconhece ter tido um pai que, embora desanimado, sempre soube resistir a todas as suas tentativas de “fuga”.
Na verdade as coisas jogam-se muito no medo. Medo por parte dos jovens de não saber nada ou de não serem capazes. É preciso dizer-lhes e provar-lhes: vocês são capazes, vocês sabem muito mais do que pensam. Outras vezes medo de certos jovens de se integrarem numa realidade social que em casa e no bairro aprenderam a rejeitar. Medo por parte da escola e dos professores que veem que os alunos não se integram no formato pré-estabelecido de ensino. A escola de hoje está mesmo mal preparada sobretudo para o choque entre o saber e a ignorância: o professor diz não estar ali para “isso”, para alunos que consideram não ter sido feitos para “lá” estar. Chegar-lhe-ia, queria ele, debitar (para quem o ouvisse), instruir, mas a escola hoje pede muito mais que “isso”.
É curioso que descobri este livro de Pennac há dois anos numa apresentação de um aluno na aula em atividade de leitura livre. Curioso o interesse do aluno pelo tema. Mas após a minha leitura de há poucas semanas, tenho agora a certeza que o aluno, que era um razoável cábula, não terá lido o livro, ter-lhe-á dado apenas umas lambedelas.
(Daniel Pennac, Mágoas da Escola, Porto Editora, Porto, 2009)
Por: Joaquim Igreja
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