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A questão de Olivença

O Caderno Negro

Olivença nunca recebeu a visita de tantos jornalistas portugueses como nas últimas semanas. O pároco da igreja da Madalena – o segundo maior templo manuelino a seguir ao Mosteiro dos Jerónimos – suspira enquanto tentamos agendar uma entrevista para o dia seguinte. «Não sei o que se passa, agora são só jornalistas de Portugal». O motivo de tanta curiosidade não é Olivença em si ou a velha questão em redor do território em disputa. A razão é só uma: a igreja da Madalena que, surpreendentemente, chegou à grande final do concurso “El mejor rincón [recanto] de España” – uma espécie de eleição das maravilhas do país vizinho que a Repsol (que também publica guias turísticos) decidiu, habilmente, lançar há alguns meses. A igreja, mandada construir por D. Manuel I no século XVI, foi o monumento escolhido para representar a região da Extremadura, superando a imponente e vizinha Mérida. Há quem conspire e garanta que a candidatura do monumento – todo ele português – terá sido uma espécie de provocação e um ato de afirmação do país vizinho: candidatar um monumento oliventino a melhor recanto espanhol é uma maneira de recordar aos portugueses que Olivença não é Portugal.

Conspirações à parte, do ponto de vista artístico e arquitetónico, a Igreja de Santa Maria da Madalena – que até tem uma imagem de Nossa Senhora de Fátima exposta num altar discreto e meio escondido – é efetivamente portuguesa. Do ponto de vista administrativo e de propriedade é efetivamente espanhola. Esta indefinição histórica é, aliás, transversal a tudo o que se respira em Olivença. Nas ruas, poucos são os que ainda sabem falar português – só as gerações mais velhas, que aprenderam de ouvido. Há cerca de dez anos, o ensino da língua portuguesa até foi intensificado nas escolas. Mesmo assim, poucos jovens a sabem falar. E os que falam português não se identificam com a língua portuguesa que um dia ouviram os avós falar – um português alentejano, o português oliventino.

A indefinição é ainda maior se se atentar na toponímia local. Mais de 70 ruas em Olivença têm nomes portugueses – uma conquista recente, embora os nomes espanhóis se mantenham. Cada rua tem duas placas distintas e os nomes raramente coincidem no sentido. A “antiga rua das atafonas” corresponde à rua “Victoriano Parra”, a “rua da rala” equivale à rua “Lopez de Ayala”. Em Olivença, as ruas têm dupla nacionalidade. E as gentes um duplo sentir.

Visitar Olivença é viajar no tempo. Nas ruas mais antigas, dominam as casas de traça alentejana. Muitas delas mantêm, inclusivamente, as típicas chaminés do Alentejo. E um pouco por toda a parte encontram-se símbolos que recordam a passagem portuguesa: escudos, quase sempre picados ou destruídos, ou portas manuelinas, como a da própria câmara municipal. Os mais velhos contam, na primeira pessoa, memórias do contrabando de café e de rebuçados – o elo de ligação entre os dois países divididos pelo Guadiana durante muitos anos. Aqui e ali, ouvem-se histórias de amores arrebatadores que venceram a velha questão de Olivença e parecem contrariar o ditado que garante que de Espanha “nem bom vento, nem bom casamento”. Muitos dos apelidos dos oliventinos são traduções quase literais de nomes portugueses. Ainda antes do franquismo, uma lista de substituição de apelidos datada de 1922 ordenou que todos os nomes que soassem a português fossem substituídos. Rodrigues passou a Rodriguez; Galvão passou a Galván; Ferreira a Ferrera.

No entanto, e estranhamente, apesar do território pertencer a Espanha e da maior parte da cultura abrir caminho até Portugal, os oliventinos parecem perdidos na tradução. Poucos se dizem portugueses. Poucos dizem, com firmeza, que são espanhóis. Quase todos se dizem indiferentes à questão. Em muitos adivinha-se a dúvida. Maior e mais genuína do que se possa imaginar: Olivença parece ser uma espécie de limbo, em que as gentes não são portuguesas nem espanholas. São pura e simplesmente oliventinas.

Na verdade, a verdadeira guerra vive-se fora de Olivença. Fora do território ocupado. O Tratado de Alcanizes, em 1297, estabeleceu Olivença como parte de Portugal. Em 1801, através do Tratado de Badajoz – denunciado em 1808 por Portugal – o território foi anexado a Espanha. Porém, em 1817, Espanha reconheceu a soberania portuguesa ao subscrever o Congresso de Viena de 1815. Na altura, o país vizinho comprometeu-se a devolver o território. O que nunca chegou a acontecer. Aparentemente, está tudo documentado. E a verdade é que Portugal não reconhece a soberania de Espanha sobre Olivença até nos mais pequenos detalhes. Saindo de Elvas em direção a Olivença, e passando a ponte nova (paga com dinheiro do Estado português), nenhuma placa indica a entrada em território espanhol. Já do outro lado da ponte, quando se regressa a Portugal, anuncia-se a mudança de país.

Seja como for, e objetivamente, a questão de Olivença parece adormecida em Portugal. Os mais novos nunca ouviram falar do caso e existe toda uma elite avessa a tocar no assunto. Para muitos portugueses, a disputa do território é mesmo considerado um tema anedótico ou coisa de fascistas ou de pobres patrióticos saudosistas. Por isso, hoje, a verdadeira questão de Olivença vai muito além da posse do território. Trata-se agora de perceber de onde vem este desinteresse pela nossa cultura. É que uma coisa é certa: independentemente de quem ganhe a última batalha ibérica, Olivença é uma mistura curiosa de culturas, um tesouro artístico inigualável e um enorme símbolo da cultura e do património português. Que, quezílias à parte, nos deveria encher de orgulho.

Por: Rosa Ramos

Comentários dos nossos leitores
Pedro pepedroalvaro1@gmail.com
Comentário:
Uma questão que nunca foi devidamente acautelada no caso de Olivença é a quem pertenciam efectivamente as terras nesse território? Ao clero? Aos nobres? Seja como for, primeiramente, os herdeiros portugueses dessas terras deverão reivindicá-las juridicamente junto do Estado espanhol. Por isso deveria ser feito um levantamento cadastral dessa região pelos registos das terras existentes e, paralelamente, exigir a devolução dessa região a Portugal.
 

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