Felizmente existe outra Igreja – ou existe, melhor dito, uma parte hoje submergida da Igreja – que mantém intacta a esperança e resiste no diálogo com a sociedade. O bispo do Porto disse, numa entrevista ao último Expresso, que é «contra a penalização do aborto», defende como solução única «a criação de condições sociais para que as famílias possam criar os seus filhos» e não concorda com a existência, como se de um desfecho do problema se tratasse, de «instituições onde se colocam crianças indesejadas», porque as crianças «devem viver e ser amadas pelos pais». Ou seja: tudo se condensa numa opção moral, à mercê das condições, dos valores e dos sentimentos individuais. Isto é diametralmente o oposto da obrigação moral, que se escuda no dogma e recusa o contraditório. A surpresa reside no facto de ser um destacado dirigente eclesiástico a dizê-lo. Porque a Igreja, neste pontificado, recuou meio século. Pode a figura do Papa ser simpática e, nesta altura da vida, inspirar compaixão e deferência, que isso não reabilita João Paulo II de ter mantido uma instituição separada do mundo dos homens e de a ter tornado fundamentalista e bolorenta. O que vale, em nome da fé, são as bolsas de resistência a este obscurantismo. O bispo do Porto provavelmente apenas tornou público o que irá na alma de muitos dos seus pares. Mesmo há cinco anos, no referendo à despenalização do aborto, o que a Igreja disse, em voz alta, foi «votem não!» e, em voz baixa, «não votem!», ainda que, doutrinariamente, o que a instituição pretendesse fosse um não rotundo e definitivo, que não obteve. Lá no íntimo, nem os partidários da argumentação vitalista radical, nem a direita mais hipócrita e bafienta – como aquela que defende a aberração de passar a mandamento constitucional a noção de vida humana desde a gestação – recusam a lei em vigor. Aceitam implicitamente o aborto em caso de violação, de doença da mãe ou de malformação do feto. Assim como admitem as causas psicológicas. E praticam a contracepção. Soluções que são absolutamente condenadas pela doutrina que dizem defender. Também é improvável que desejem a condenação de mulheres que provocaram a interrupção da própria gravidez, como as sete que são agora julgadas em Aveiro ou as 16 que foram absolvidas há dois anos na Maia – de um total de 11 mil que própria Direcção-Geral da Saúde estima que, só no ano passado, teriam praticado o aborto clandestinamente. Com certeza que não são só mulheres que votam à esquerda ou que não têm por hábito assistir à missa. O bispo do Porto, sendo quem é e dizendo as coisas da maneira como as disse, só provou que não faz como Frei Tomás, que nesta como noutras matérias sociais é o modelo eleito dos comportamentos da Igreja. Passados cinco anos, talvez a sociedade portuguesa esteja mais madura para debater o problema com integridade e sem medo do divino castigo. É bom que esta questão vá de novo a referendo. Provavelmente até precisamos de uma causa que agite as consciências e acuda à prostração em que o país caiu. O essencial é que se perceba aquilo que ficou por explicar na última vez: despenalizar não significa obrigar a fazer. Se há quem o faz, é porque toma uma opção delicada e presumivelmente muito difícil sob todos os aspectos. O mínimo que pode exigir é ter condições – e paz.
Por: Rui Isidro