Desde que o governo anunciou a extinção de milhares de freguesias, o Bloco de Esquerda chamou a atenção para a necessidade de qualquer reforma territorial passar pela audição e pronunciamento das populações. Repare-se que o BE nunca se opôs à reorganização administrativa do país! Apenas exigiu que ela fosse chancelada por aqueles a cujos interesses alegadamente é dirigida…
Coerentemente, o Projeto de Lei que o Bloco de Esquerda apresentou oportunamente na Assembleia da República definia o regime de audição e participação das autarquias locais e populações no processo legislativo de criação, extinção, fusão e modificação territorial de autarquias locais. Resumindo, consagrava o referendo local obrigatório e vinculativo nestas matérias.
Todos os partidos (CDS, PSD, PS, PEV e PCP) se opuseram a esse projeto. No mesmo dia a Proposta de Lei do governo foi aprovada na generalidade. Não foi por acaso que se seguiu uma enorme contestação, materializada na grande manifestação da ANAFRE, a 31 de março.
Entretanto, Cavaco Silva promulgou a Lei 22/2012, de 30 de maio, celebrizada como “Lei Relvas”, ou simplesmente desprezada como a “Lei da R.A.T.A. – Reforma Administrativa Territorial Autárquica”.
A ameaça potencial de extinção de freguesias tornou-se real após a entrada em vigor desta lei. Assim, as deputadas e os deputados municipais eleitos pelo BE apresentaram localmente um Projeto de Deliberação para a realização de um referendo que mobilizasse todos os cidadãos do concelho (e não apenas os eleitos), concedendo a força do voto a esta grande batalha em defesa da democracia local.
Mais uma vez, ao contrário de outros municípios do país, no concelho da Guarda, tal como acontecera na Assembleia da República, as diversas forças políticas recusaram a proposta do Bloco de Esquerda para a realização desse referendo.
Assim, a extinção de freguesias locais sem escrutínio popular poderá tornar-se realidade já a partir de 14 de outubro, data limite para a pronúncia das Assembleias Municipais e de Freguesia. Uma vez que muitos destes órgãos, ao contrário do caso da Guarda, recusam (e bem) tornarem-se cúmplices da aplicação da Lei da R.A.T.A., foi cautelosamente nomeada pela maioria governamental uma “unidade técnica” que proporá de forma discricionária o novo mapa das freguesias, redesenhado à revelia das populações e sobretudo contra a sua vontade.
Fica por explicar o silêncio envergonhado do executivo camarário da Guarda, que, investido de funções deliberativas sobre a matéria, se recusou a justificar a sua total ausência de liderança no esperado, ainda que retorcido, processo administrativo de agregação, fusão e extinção de freguesias do concelho.
Já não nos bastava uma Assembleia Municipal que decide contra os interesses das populações que a elegeram, agora temos uma Câmara que simplesmente não atua!
Alguém disse um dia que quando um homem pratica uma coisa profundamente estúpida é sempre pelo mais nobre motivo. Por isso estou pronto a reconhecer que alguns até acreditam naquilo que defenderam.
Mas sei também que impera, numa boa parte dos casos, a simples e vã glória dos comissários políticos, conseguida à custa de ganhos pessoais e partidários imediatos e circunstanciais. E, já agora, de uma promessa para mais qualquer coisinha no futuro.
Há gente que vende, a troco de 30 dinheiros que ninguém vê, o poder que lhes foi esperançosamente conferido pelo povo. Através desta traição certificam o óbito de uma democracia local que se fenece lentamente, tal como acontece infelizmente com a outra democracia, a geral, ambas atoladas em teias de interesses e no esvaziamento ético e doutrinal dos seus inglórios representantes diretos.
Afastam, por esta via, a última barreira mental a todos os desmandos que lhes vão sorrateiramente aquecendo os sonhos: a vontade do povo!
Pelo caminho, em nome de umas prebendas de circunstância para amigos e familiares, desaparecem escolas, postos de correio, extensões de saúde, centros de dia. Por fim, hão de desparecer os próprios habitantes!
E eles, na sua infinita sabedoria na arte da submissão à política de conveniência, só então perceberão que aquilo que egoisticamente e de forma tão ignóbil roubaram um dia ao povo, lhes será retirado sem apelo nem agravo.
Como dizia um português que bem percebia o povo – Camilo Castelo Branco – «Todo o homem tem uma porção de inépcia que há-de sair em prosa ou verso, em palavras ou obras, como o carnejão de um furúnculo. Quer queira quer não, um dia a válvula salta e o pus repuxa»…
Por: Jorge Noutel
*Deputado eleito pelo Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal da Guarda