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Pradial

1. Acabei de ler, há poucos dias, o livro “Portugal, o Sabor da Terra”, de José Mattoso, Suzanne Daveau e Duarte Belo, ed. Círculo de Leitores. Trata-se de uma obra extraordinária, que permite conhecer o país numa perspectiva histórica (Mattoso) e geográfica (Daveau) regional, sem nunca perder de vista o todo nacional. O critério usado para a fixação de unidades regionais afigura-se absolutamente correcto. Quer do ponto de vista físico, humano, ou histórico. Por exemplo, individualiza–se as três beiras (litoral, alta e baixa), pondo-se de parte essa ficção, ao serviço de determinados interesses, chamada “Beira Interior”. Destaque ainda para as excelentes fotos de Duarte Belo, graças às quais o leitor pode descobrir lugares recônditos que nunca sonharia existirem. Nessas imagens, a preto e branco, raramente há grandes planos do que se pretende destacar. As vilas e aldeias estão como que diluídas no espaço envolvente. Enfim, um volume que se lê de um fôlego. Uma advertência útil: não é um guia, nem muito menos um roteiro de viagens. Aproxima-se, a espaços, do ensaio literário, maxime o incontornável “Portugal”, de Torga, ou “Os Pescadores” de Raul Brandão. Mas só pela qualidade da escrita e profundidade do olhar. Em tudo o resto, estamos perante um trabalho científico e apaixonante.

2. Não podia estar mais de acordo com um grande amigo, quando escreveu que “o assunto mais importante de um Estado não é a Liberdade. É a Vida e a Morte.” Nem vale a pena repetir as razões. No entanto, presumo que fala de um Estado de direito democrático, pois para os outros a liberdade nem sequer é assunto. Em rigor, mesmo para aqueles, a liberdade também não é um tema ou uma área de governação, mas a base fundadora, a razão de ser do contrato que os erigiu. Mesmo assim, a Liberdade é aqui encarada enquanto garantia, enquanto pressuposto intangível. Todavia, a sua plenitude exige que, mais do que um conceito formal, seja encarada como um desafio absoluto, intrínseco à própria existência. Ou seja, em princípio, os cidadãos que integram um estado democrático são livres. Mas quantos são libertos? Quantos renegaram a quinquilharia trendy, a vaidade, a avidez, o culto da imagem, o compromisso, a ânsia de poder? Quantos perceberam que a liberdade não serve só para que não nos atrapalhem a vidinha, mas para sermos outra coisa que nos ultrapassa e acolhe sem perguntas? Muito poucos, caros amigos. Até hoje, orgulho-me de ter conhecido alguns: desde alguns vagabundos que havia na Guarda, a alguns clochard que conheci em Lisboa, passando por um alemão desgrenhado, que vi ao longe, numa praia do litoral alentejano, acompanhado de um cavalo e um cão. E com quem conversei por improvisar um jantar, em cima da areia, enquanto o cavalo se encarregou de deglutir, à socapa, umas peras que tinha acabado de comprar. Circulava de terra em terra, trabalhando nisto e naquilo. No dia seguinte ia ajudar a carregar umas caixas de pescado no próximo porto. Não tinha medo de nada (cumprindo, sem o saber, o anseio de Étienne la Boétie, no “Discurso da Servidão Voluntária: “n’ayez pas peur”). A não ser, talvez, de perder as noites estreladas.

Há certos acontecimentos que, ocorrendo isoladamente, nada representam. Acaso se repitam, em circunstâncias análogas, serão tomados como fruto do acaso, ou de uma mente demasiado perspicaz. O problema é quando se repetem muitas vezes… Qual a sua leitura? Vou dar um exemplo. De visita a várias lojas de conhecidas cadeias de material informático, audiovisual e electrodomésticos, em períodos e cidades diferentes, deparei com o mesmo fenómeno acústico: no sistema sonoro do espaço estava a passar, em “alta-voz”, a gravação de um concerto ao vivo de uma cantora brasileira da moda. Não sei o nome, mas sei que toca também muito na rádio e tal. Pois a canora brasiliensis é dotada de uma incrível voz clitoriana (lembrei-me do argumento do épico porno “A Garganta Funda”, não me perguntem porquê). Com a qual vai repenicando as cançonetas “festivas”, de uma vacuidade infinita. Entre os temas, depois dos aplausos, tomada de uma gratidão orgiástica, manda uns bitaites, com muitos “cara”, “estamos aí”, “bora aí, minha gente”… E a palavra “baía” a pairar no éter, como um recibo de quitação universal. Tudo isto como se o público inteirinho estivesse a sair do duche depois da aeróbica, ou de outro qualquer “esporte” da moda. É claro que, para o escriba, a tortura é indescritível. Pior só mesmo uma dor de dentes. Daquelas que… Enfim, não é preciso dizer mais nada. Ou a eurodeputada Ana Gomes a descompor malcriadamente os seus adversários políticos. Nem a contemplação dos últimos gadgets informáticos e de hi fi consegue amenizar o desconforto que se apodera de mim nesses momentos… Ao fim de vinte minutos a cirandar pelos escaparates, começam a aparecer os primeiros sinais preocupantes. Os quais tenho seguido à risca, abandonando o local em passo de corrida, sob pena de acabar na unidade de cuidados intensivos… Mas há um ponto positivo nesta história, apesar de tudo: as visitas a estes bastiões do consumo acabam por ficar bem mais económicas… “Vamos nessa?”

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a ortografia antiga

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