A história que segue é a de um casal de Portalegre, refém como tantos outros da casa comprada com um empréstimo bancário. Muitos outros, mas não eles, acabaram por se sujeitar às inconveniências de um casamento já terminado na prática e de que o último cimento era o problema da casa comprada em conjunto. No estado actual do mercado ninguém a compraria e a adjudicação dela a um deles iria obrigá-lo a renegociar com o banco as condições do empréstimo, que passaria a pagar sozinho e quase de certeza com uma taxa de juros muito mais alta. O pior, em muitos e muitos casos, é que o empréstimo hipotecário é na realidade a consolidação de vários outros créditos. Em resultado, muitos casais portugueses, desavindos ou não, devem hoje muito mais pela casa do que ela vale, fruto da agregação de empréstimos ou da desvalorização geral do mercado imobiliário. Por isso não se divorciam ou, quando o fazem, continuam a viver juntos.
O casal de Portalegre divorciou-se mesmo e no inventário que se seguiu ao divórcio, onde o banco veio reclamar o crédito hipotecário, decidiu-se pela venda da casa. Esta tinha sido avaliada por cerca de €117.000,00 e foi posta à venda por 70% desse valor, que o banco cobriu com gosto para ficar proprietário dela. A história habitual neste tipo de casos continua com o casal a dividir a meias o prejuízo de na venda se não ter obtido o valor da dívida bancária, mas aqui não. Um dos elementos do casal (ou melhor, do casal dissolvido – no calão dos tribunais) veio requerer que se considerasse a dívida ao banco saldada, uma vez que a casa tinha acabado por ficar na propriedade do credor. Podemos ter a certeza de que não foi esta a primeira vez que se tentou isso num tribunal, mas desta vez o juiz (juíza?) deu razão (parcialmente) ao devedor e obrigou o banco a considerar saldados €117.000,00 da dívida hipotecária. Decisivo aqui, para além dos argumentos que passo a resumir, foi o facto de o banco se ter conformado com a avaliação feita à casa, quer no momento da aquisição (e desta não poderia fugir), quer para efeitos de venda – tendo aqui certamente servido de base o valor patrimonial para efeitos fiscais.
Como argumentos serviu-se o tribunal em primeiro lugar do abuso de direito, na modalidade de desequilíbrio no exercício de um direito de crédito, pelo banco haver para si a casa por valor substancialmente inferior ao por si aceite na relação idealmente sinalagmática, e por isso equilibrada, resultante do contrato de mútuo. Para além disso, e em segundo lugar, no enriquecimento sem causa que representaria o banco ficar com a casa por aquele preço e ainda pretender receber a diferença entre os 70% por si pagos e a totalidade do valor atribuído à casa.
É impossível prever a evolução da jurisprudência a partir desta decisão, mas os argumentos parecem sólidos e coerentes. Parece também que é tempo de os bancos começarem a mudar das actuais tácticas predatórias para uma maior responsabilidade social, nem que seja em penitência pelas suas muitas culpas na actual crise. Uma maneira é, por exemplo, em casos como o de Portalegre, apresentarem propostas mais próximas, para cima ou para baixo, do valor patrimonial dos bens vendidos.
(O despacho está disponível no site da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.)
Por: António Ferreira