Quando comecei a escrever estas crónicas ‘interiores’, em 2003, não tinha pisado sequer terras latino-americanas. Hoje, passados alguns anos, escrevo esta a partir de Montevideu, a capital do Uruguai, onde desde há quatro venho todos os anos passar duas semanas e leccionar um seminário numa universidade. Montevideu é fácil e muito ibérico, ou ibérico-italiano, é fácil um português sentir-se em casa. Por vezes, passeando pela cidade, é muito real a sensação de estar numa qualquer cidade espanhola da costa Norte, Santander, ou Gijón, ou La Coruña. Há quem diga que Montevideu não é bem América Latina, e os próprios uruguaios consideram-se mais europeus do que latino-americanos, o que é visto com desdém pelos vizinhos mais a Norte. Mas esta é apenas uma das muitas contradições e paradoxos de que é feito o continente que me habituei a calcorrear desde Guadalajara, no México, mais a Norte à ilha de Chiloé, no Chile, mais a Sul. Desde 2006, com a estrada Panamericana quase sempre ali ao lado.
Cada viagem é um amontoado de impressões que se vão juntando como um puzzle e que vão construindo a minha América Latina muito íntima e pessoal. Com contrastes, sempre os contrastes, e sempre longe dos anódinos ‘resorts’ onde muitos se fecham para passar férias. A minha América Latina é feita de vida e trabalho partilhados com pessoas reais, é feita de rotinas, de esforço, suor e muita lama e pó do caminho. Andar de mota. É feita de amigos e daquele sentir-me em casa que me faz voltar todos os anos para os rever. Subir e descer os ‘cerros’ com as multidões. A minha América Latina é a busca de coisas sempre novas e a descoberta de coisas sempre próximas. E a surpresa renovada de me verem sempre como um de cá, algures por cá, antes de saberem de onde venho («Hey, paisa!»). Quando explico que sou português, a estranheza irrompe. Portugal é indefinido, estranhamente próximo e ausente, por vezes arrumado nos arredores do Brasil como mais uma das insignificantes Guianas. A geografia mágica do continente tem destas coisas, tudo é possível, mesmo a emocionante surpresa daquele brasileiro em Puerto Alegría, minúscula comunidade inundada na Amazónia peruana: «Português? O legítimo português? De onde tudo começou?»
Para trás já ficou Puerto Alegría e o Amazonas crescido, a visão cinemática daquele ‘comedor’ em Puerto Nariño, na margem colombiana, da azáfama das cozinheiras e empregados com água quase pelos joelhos. Estou outra vez em Montevideu. Sempre regresso a Montevideu com a inebriante sensação de ter partido há pouco, de ter estado fora pouco tempo. Mero interregno, breve ausência, périplo sempre retomado. E faltam poucos dias para voar para Lisboa, parece que vou conseguir escapar à greve da Iberia. Mais uma vez. Daqui por um ano voltarei a Montevideu, sei-o bem. Retomarei o fio condutor que me há-de levar, dessa vez – à boliviana La Paz? – e que mesmo à distância me dita as suas regras, pela literatura. Ah, a literatura latino-americana… Roa Bastos, García Márquez, Cortázar, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier. Uma e outra vez Carpentier. Mas esta já seria outra crónica…
Por: Marcos Farias Ferreira