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Germinal

1. Há dias, alguém questionava a minha profissão de fé de ter sempre um plano B para tudo. Como se tal facto tivesse atrás de si uma suspeição permanente lançada aos outros!… Nada disso! Logo à partida existem duas vantagens em jogar dessa maneira. A primeira é de ordem essencialmente prática. Procede daquela ideia cínica, que consiste em “esperar o melhor, mas contar com o pior”.  E não há aqui qualquer juízo de valor. Perante a evidência, nada melhor do que estar preparado para ela. Ora, se a realidade não é confiável, se os outros nos poderão surpreender a qualquer momento, a única forma de encarar o facto com naturalidade é precisamente confiar nessa tendência. Com agilidade. Sem dramas. A outra razão é de ordem filosófica e, aparentemente, mais obscura. Tem a ver com a necessidade permanente da desidentificação. Ou seja, com a capacidade de não fazer depender a nossa realidade das nossas circunstâncias. De saber despojar-nos delas. De não associar a plenitude aos objectos familiares que, supostamente, a confirmam. Tudo está e depois deixa de estar. E onde entra o plano B? É simples: actuar permanentemente como visitas ou visitados. Saber ficar, aceitando o que é, estando ou não.

2. O interessante frufru acerca da pieguice vale não tanto pela animação que trouxe às redes sociais, mas sobretudo por aquilo que revela: uma quantidade significativa de inocentes políticos que dão à costa nestas ocasiões. O período que vivemos é propício a que pequenas minorias efervescentes capitalizem a insatisfação que grassa em largos sectores da população. Alguns fazem-no esperando por um movimento redentor. São os inocentes políticos. Há-os de dois tipos: os “Billy Budds”, inspirados num personagem de um conto de Melville, e os “príncipes Mishkins”, baseados no carismático protagonista de “O Idiota”, de Dostoievski. Os primeiros são incapazes de reconhecer o mal e a sua complexidade. Sobretudo nos regimes totalitários. Ou seja, onde domina o espectáculo concentrado e o poder de sedução dirigido a quem confunde a realidade com as suas representações ideológicas. Mas também passam ao lado dos micro fascismos e dos poderes paralelos que as democracias abrigam. Por sua vez, os “príncipes mishkins” são dominados por um clima de ordem compassiva. Preenchem um tipo de missionários que reduzem a acção política a um aumento ou diminuição do sofrimento. Reconhecem o mal, quiçá a sua natureza, mas sempre a posteriori. Nunca quando ele se revela e urge denunciá-lo. Alguns exemplos: André Gide, depois do entusiasmo com o regime soviético, acaba por denunciar os crimes de Estaline; Noam Chomsky chegou a ser um entusiasta do regime dos khmers vermelhos no Cambodja, até mesmo depois de o mundo inteiro tomar conhecimento do barbárie que ele escondia, vindo depois a retractar-se; Michel Foucault apoiou fervorosamente o regime dos aytollahs no Irão, após a deposição do Xá, até o numero de execuções ser demasiado alto para poder negar a cruel evidência. Para estes inocentes, a lucidez só emerge após a embriaguez do compromisso com a redenção ter passado. Dando assim razão, mesmo fora de tempo, a Santo Agostinho, quando, numa perspectiva moral, vê a queda como uma facto afortunado. A propósito, cabe citar uma frase de Graham Greene: “a inocência é como um leproso mudo que perdeu o sino que o anuncia e se passeia pelo mundo sem más intenções”.

Ocasionalmente, interessam-me as movimentações políticas locais da Guarda. Mas importa esclarecer que o tema me interessa por simples curiosidade e não para alinhar jeremiadas placebas. Essa curiosidade é a mesma que sinto diante de um palco onde vários loucos se digladiam por chegar ao poder, para depois o conservar a todo o custo. Na Guarda é notória a baixíssima qualidade dos actores políticos, que a valia do tal teatro épico, grosso modo, acompanha. Mas será que se pode falar de verdadeiro combate político nesta cidade? Um combate em cujo centro estão os modelos, as propostas concorrentes e não os cabeças de cartaz? Um combate onde o ponto de focagem está na mobilização e não na arregimentação? A resposta é negativa. Tomemos agora como exemplo o que se assiste nos dois únicos partidos com expressão eleitoral local – PS e PSD. É certo que, desde sempre, a política sempre foi para mim muito mais do que o mundo dos partidos políticos, sujeitos políticos em vias de extinção. Mas, por conveniência narrativa, centro-me por ora neles.  Comecemos pelo PSD. A estrutura local deste partido pouco tem a ver com o que se passa a nível nacional. Ou seja: ausência de debate político-ideológico; resistência à modernidade; discurso virado para eleitores de uma ruralidade em extinção, de um conservadorismo anacrónico e de um tecido empresarial incipiente; tiques populistas. Ou seja, o PSD local esquece-se de um pormenor essencial: ser de direita, hoje em dia, é estar do lado da modernidade, do desenvolvimento e da liberdade. É pôr de lado as respostas conceptuais perante a realidade em que a esquerda ainda continua enredada. Passarei agora ao PS. Aqui a situação adquire uma dimensão trágica. Paredes-meias com o grau zero da política. A façanha, embora com antecedentes propícios, foi conseguida pela actual direcção. Que cometeu a proeza de ter obtido os piores resultados da história do partido no distrito. E pensam que daí se retiraram algumas consequências? Não, o responsável distrital limitou-se a apoiar Seguro e adaptar-se aos novos tempos. Depois de ter feito juras de amor eterno a Sócrates. E a confirmar o seu deserto de ideias e propostas para a região. Em síntese, chega de produtos do aparelho, candidatos a caudilhos, distribuidores de lugares e favores. O que a Guarda necessita, urgentemente, é de políticos mobilizadores, esclarecidos, ousados, atentos ao pulsar da cidade e da região. Só assim prevalecerá o melhor das capacidades instaladas, as boas práticas da administração e o poder de atractividade.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Comentários dos nossos leitores
carlos veloso cjocas@gmail.com
Comentário:
Caro António Godinho Gil, muitos parabéns pela sua bela síntese. Mas presumo que seja difícil, apesar de não gostarmos destes actores que vai da esquerda à direita do lugar porque as pessoas da Guarda continuam a votar neles (nos partidos) e não acreditam em alternativas, movimentos de cidadãos sem interesses. Sendo o principal interesse de um movimento de cidadãos deixar marcas no território, deixar obra para o público local ou que nos visita! De facto, temos visto que nos últimos 20 anos a CMG tem ajudado, em parte, afundar a cidade. Faltam ideias, falta uma verdadeira discussão! Um abraço. C Veloso
 

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