E pronto, depois do Futebol, já só falta falar de Fado e de Fátima para compor a tríade revivalista, que muitos entendem ter sobrevivido na Democracia. Mas de Fado não me lerão por aqui uma linha que seja. Prefiro ouvi-lo, simplesmente. De preferência, em locais pouco recomendáveis. Sobre Fátima, coloco-me tão só no terreno da História. Outras paragens são escorregadias e invioláveis. Seja como for, não creio que a trilogia signifique hoje o mesmo, ou tenha o mesmo peso que já teve. Para já, importa dizer que, tirando as décadas de 1830 e 40, quando as principais reformas liberais liquidaram o Antigo Regime, nunca o país mudou tanto e tão depressa como nos últimos 30 anos. E essas mudanças abrangem muito mais do que simples grandezas estatísticas… Mas será que esta transformação deixou intocados determinados sistemas de representação colectiva, de que a tríade é o exemplo máximo? A resposta, a meu ver, não é linear. E aqui, socorro-me de um comentário que já deixei noutro local, sobre o mesmo assunto. É que o cerne do problema não está nessas manifestações, mas na forma como são instrumentalizadas. Todos os regimes e sistemas políticos necessitam de signos (uma estética, uma linguagem, uma narrativa, um conjunto de representações simbólicas) que o legitimem. Todos, sem excepção. Até as democracias. E um pouco forçado apresentar a tríade dos 3F como uma criação exclusiva do Estado Novo. Fátima nasceu antes, como uma reacção do país rural contra os desmandos anti-clericais da 1ª República, a profunda crise económica e política que se deu após a nossa entrada na Grande Guerra e a síncope moral que esta infligiu. O Fado é muito, muito mais do que a canção oficial do Estado Novo. Sobra o Futebol. Trata-se de um fenómeno universal, um ersatz da agressividade e da competição, que assim ganharam um meio pacífico e viável de se expressarem, sob forma lúdica. Também há quem veja em certos momentos de bom futebol a inteligência em movimento. Mas essa análise ficará para depois. Foram instrumentalizados pelo Estado Novo? Sim, mas podia ser de outra maneira? Não conheço nenhum regime – do espectáculo concentrado ou difuso, utilizando a terminologia de Debord, ou noutra perspectiva, pré-industrial ou hedonista, segundo Pasolini – onde esse tipo de apropriação não tenha acontecido. Acabei de ver o magnífico documentário “Fantasia Lusitana”, de João Canijo. Através dele, percebi que a gigantesca encenação que o Estado Novo criou de si mesmo, recorrendo à recomposição fantasista dos mitos do passado para serem projectados no presente, não foi sequer original. A originalidade, no contexto delicado e apocalíptico da II Guerra, foi ter transmutado a nossa insignificância numa grandeza oficial tão solene quanto ecuménica. Espectáculo para dois públicos distintos, é bom dizer-se: internamente, capaz de insuflar um orgulho desmedido num país pobre, atrasado e infantilizado. Para o exterior, criando a imagem de um oásis de paz, tolerância e universalismo. Uma neutralidade festiva, um arranjo floral para que as potências beligerantes, julgando-nos loucos simpáticos e exóticos, nos tomassem tão entretidos com a sua celebração que, por decência, ou talvez por compaixão, não nos interrompessem o desfrute desse delírio. Por falar em tríade, creio que a outra bem conhecida – Deus, Pátria, Autoridade – talvez se aproxime mais da verdade para definir o Estado Novo. A máxima dos 3F foi pois uma espécie de adorno omnipresente no cenário do Portugal dos Pequeninos, criado pelo regime para se amparar e justificar. A melodia certa para a canção com que o país foi embalado durante meio século. Mas foi só isso, um instrumento. Na democracia, por razões óbvias, está muito longe desse desiderato. Aqui, cada um dos vértices tomou caminhos diferentes. A religião transformou-se progressivamente numa questão privada e o laicismo tornou-se uma realidade inquestionável. O Papa movimenta multidões, não enquanto expressão de fé, mas como puro espectáculo. O Fado ganhou merecidamente a condição de género musical nacional (embora não oficial), enriquecido com novas experiências e contributos díspares, que só a liberdade tornou possível. O Futebol, por sua vez, veio a ser um exemplo de sucesso da indústria do entretenimento, de acordo com um modelo empresarial e com a utilização intensiva dos media. Mas tornou-se também palco para reivindicações políticas locais e regionais. Impôs uma redoma à sua volta, que o protege da fiscalização dos poderes constituídos, criando assim uma espécie de imunidade, onde impera uma lógica de funcionamento diferente do resto da sociedade. Mas se, no caso do futebol, se pode falar com propriedade em instrumentalização pelo poder, ela é mais visível a nível local. Juntando no caldeirão as relações com o sector da construção civil, temos uma mistura explosiva. Mas onde as diferenças se fazem notar com maior acuidade é nos meios financeiros que o futebol movimenta. Sobretudo nos clubes de topo, passou-se de um modelo associativo para as SAD, onde os activos financeiros, os direitos televisivos e o merchandising são determinantes. Portanto, se no Estado Novo o Futebol foi convenientemente utilizado pelo regime para fins propagandísticos e domesticação da natural conflitualidade, na Democracia aparece como um fenómeno de massas incontornável, um espelho da sociedade, incluindo o seu lado perverso.
Por: António Godinho Gil