Quando olho para a situação a que chegámos só me ocorre a ideia da existência de três tipos de pessoas: as que vivem do seu trabalho, as que vivem do trabalho das outras e as que não vivem mas sobrevivem.
Enterrado um governo de má memória, eis-nos confrontados com uma já velha maioria. À qual se aliaram, no essencial, aqueles que o povo acabou de despedir. Agora é só acreditar que a crise imposta por uns será resolvida pelos outros.
Só posso pensar em como a fé é coisa bizarra e pouco tangível. Tácito dizia até que os homens são feitos de tal modo que acreditam mais facilmente naquilo que lhes pareça obscuro.
O meu problema com tudo isto é que não passo de um descrente irredutível e de um consumado pecador. Não acredito em sermões e homilias vomitadas por jogadores de roleta. Um casino nunca será uma igreja, por muitos Cristos que lhe pendurem à porta.
A última machadada na fé que eu sabia que já não tinha chegou há dias com a golpada do 13º mês. O despudor do abocanhamento de um imposto sobre os rendimentos singulares, basicamente provenientes do trabalho, só tem paralelo na falta de vergonha de quem se recusa a ferrar os dentes em rendimentos especulativos de grandes fluxos financeiros ou nos imensos patrimónios de oligarquias instituídas.
Esta política saloia, repleta de perversidade e de injustiças, foi entronizada por missionários que pregam o advento da falência do Estado social, Estado esse que está afinal na base da democracia. Fazem-no com a hipocrisia de o dizerem muito menos vezes do que o vão pensando.
Deste modo passámos, por imposição, a peões de um jogo macabro em que a porção dos rendimentos do nosso trabalho transferida para a alta finança especulativa – na forma de juros e de impostos cobrados – não pára de aumentar. É um pouco como na religião fanática, em que o ritmo da fé vai crescendo no coração dos devotos que mais se consigam achegar ao objeto da sua crença…
O equívoco reside no facto de as questões de fé, nesta paróquia em que sobrevivemos, valerem hoje mais do que a realidade. Aumentar os juros, apertar o crédito, refrear o crescimento económico, é o mesmo que enterrar um doente numa banheira de gelo só para lhe baixar a febre. Mas para esta gente não importa, porque para eles a fé, a sua fé, é aquela coisa que nos conduzirá, a todos, crentes ou não, ao seu paraíso.
Estes fiéis ainda não compreenderam que os pecados da alma não se pagam com purgas do corpo e que, por isso, a dívida que temos não é remível à força. Não percebem que sem renegociação, que por acaso nem é o mesmo que voltar a pecar, mas antes o perdão redentor de estultas e inúteis penitências, nunca chegaremos ao Céu que almejam, seja lá isso o que for.
O Vaticano desta gente é a troika. Os mercados são o Papa. As agências de rating são uma espécie de conferência episcopal da economia moderna. Os comentadores de assuntos económicos são os bispos. A austeridade é a hóstia. Os juros cada vez maiores são a dízima. A bancarrota é o adultério de uma esposa fiel. Os credores são exorcistas que só querem o nosso bem. O presidente Cavaco é uma espécie de Nuno Rogeiro do Facebook. O Passos Coelho é o sacristão da missa. A educação, a saúde, a justiça, enfim, são apenas a Fátima do mundo dos crentes. O desemprego e a precariedade são as ave-marias e os pais-nossos que vamos ter de penar. As televisões são o terreiro da feira. A Itália e a Espanha são o futuro prometido. A Europa é a quermesse onde tudo isto acontece.
Só o povo, pasme-se, é que ainda é o mesmo…
Quermesse: (francês kermesse, do flamengo kermisse)
s. f.s. f. Festa ou feira paroquial = BAZAR; Feira de beneficência; Feira com arraial.
Por: Jorge Noutel *
* Deputado do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal da Guarda