Portugal foi a votos, na sequência da grave crise financeira que tem vindo a afectar o País e a própria Europa do Euro. O PSD ganhou as eleições de forma expressiva e, em aliança pós-eleitoral como CDS/PP, acaba de formar um governo apoiado por uma maioria absoluta de deputados na Assembleia da República. O PS foi derrotado, como se previa, pagando uma pesada factura política pelas responsabilidades de governo que teve durante a crise que tem vindo a afectar os países europeus com maiores dificuldades nos principais índices vitais das suas finanças públicas. Índices que, no caso português, são demasiado elevados: défice, dívida pública e dívida externa, acompanhados por uma taxa galopante de desemprego, que, como se sabe, agravará ulteriormente as contas públicas. Com uma panorâmica destas não é de estranhar que o PSD tenha ganho as eleições, completando aquele que sempre foi um sonho do centro-direita: uma maioria, um governo, um Presidente. Deste ponto de vista, a herança de José Sócrates não foi muito brilhante.
1. No que toca ao PS, a responsabilidade pela derrota foi assumida inteiramente pelo líder ao abandonar a liderança, dando lugar a um novo processo de recomposição política interna que passará por eleições e uma nova configuração política nos órgãos internos nacionais do partido. Se, no plano do País, a palavra foi devolvida aos cidadãos para decidirem sobre quem deverá conduzir politicamente o nosso destino colectivo, no plano do partido, a palavra foi devolvida aos militantes para que decidam sobre a nova liderança que deverá conduzir o partido durante um mandato que irá decorrer em situação de oposição. Só que se, no plano nacional, a mudança é radical, mudando por completo os protagonistas, no plano interno do partido, tem vindo a afirmar-se um certo transformismo que não é nada saudável para o próprio partido, uma vez que nos centros vitais do sistema partidário tendem sempre a manter-se os mesmos, transformando o exercício de cargos políticos em autênticas vocações profissionais. Ora eu penso que esta situação, no essencial, é nefasta, negativa, sobretudo sabendo-se muito bem como funciona esta espécie de reprodução de um poder intermédio permanente e transformista. E sabendo-se também como é que se chega a esta condição.
2. Aguarda-se, pois, que as candidaturas que já estão no terreno sejam capazes de mobilizar o partido, de repensar a posição do PS nesta difícil fase da vida política e financeira do País, de projectar uma identidade política capaz de responder às profundas mutações que há muito estão a mudar a natureza e a identidade da democracia representativa, de relançar aqueles que são os grandes valores patrimoniais de uma esquerda genuinamente democrática e, finalmente, capaz de contribuir para uma desejável descrispação política do nosso ambiente democrático. Tudo isto, claro, sem esquecer as particulares responsabilidades do PS relativamente ao programa que assinou com a Troika e ao qual, naturalmente, ficou vinculado, como Partido. E sem esquecer que se, por um lado, este vínculo pesará como chumbo na dialéctica política à esquerda, sabendo-se que PCP e BE continuarão a cavalgar os problemas do País ao som da marcha popular «Os ricos que paguem a crise», por outro, a margem de manobra do PS relativamente à coligação no poder será muito estreita se o governo se limitar a aplicar com rigor o «Memorando de Entendimento»!
3. O que se espera, todavia, falando do PS, é mais uma visão de futuro do que um ajuste de contas com o passado e um exercício de oposição desenvolvido para cumprir calendário. Porque deixou de ser possível olhar para o partido com a lógica de um aparelho excessivamente asfixiante e voraz, sobretudo em tempos de vacas gordas, sendo também evidente que o excesso de personalização da liderança leva sempre a uma concentração extrema de poderes que é inimiga da boa gestão política, interna e externa. Se a primeira afasta o partido da sociedade e o consome em lutas internas, a segunda reduz a política a um exercício de vontade do líder que tende a anular a riqueza e a força orgânica do partido, substituindo-a por um exército de «ungidos pelo líder», qual Rei Midas que transforma em ouro tudo aquilo em que toca. É por isso que se torna necessário, do ponto de vista dos partidos, combinar a componente orgânica da política – as boas mediações partidárias entre o subsistema político e a sociedade civil – com a componente comunicacional, uma relação comunicativa aberta e interactiva do partido com os cidadãos. Numa palavra, torna-se necessário superar de uma vez por todas, por um lado, o aparelhismo, as bolsas de quotas, o pequeno jogo de interesses, o círculo vicioso da relação entre profissionais do aparelho e militância «massa de manobra», e, por outro, a lógica do puro marketing, do «spinning», do truque mediático, da promiscuidade entre poder mediático e poder partidário. E eu creio que isso só será possível, no primeiro caso, através de primárias abertas, lá onde os candidatos do partido devam exibir credibilidade pessoal, profissional e social junto dos cidadãos, em vez de exibirem o exterior (do partido) como lugar onde se esconde sempre um inimigo a abater; e, no segundo caso, através da incorporação da lógica da rede no interior da própria organização partidária e na organização do seu discurso político, em função de uma nova cidadania activa emergente, cada vez mais autónoma e exigente. Uma lógica que reconfigure a própria organização partidária à medida das exigências deste novo cidadão activo que, na rede, dispõe cada vez mais de meios autónomos de comunicação e de afirmação política, de expressão e de protagonização no espaço público.
4. Seria, pois, interessante que o PS conseguisse propor aos seus militantes alternativas estimulantes, mobilizadoras e inovadoras, deixando para trás a lógica asfixiante da emergência, do inimigo externo, da personalização carismática da política e dos estereótipos da velha social-democracia. Devendo, sem dúvida, dar o seu contributo político para ajudar o País a sair da emergência e vendo-se ele próprio a lutar com a necessidade de ter de se dotar rapidamente de uma liderança em condições de responder com legitimidade política às solicitações e urgências do País e do partido, nada impede o PS de iniciar um percurso de profundo repensamento da sua organização, do seu projecto e da sua forma de exercício da política num quadro civilizacional que tem vindo a mudar a uma velocidade alucinante. Estar na oposição dá-lhe tempo para se reorganizar e se projectar.
5. É por isso que considero absolutamente necessário que o PS seja capaz de, nesta fase, através dos candidatos, propor aos seus militantes ideias à altura dos grandes desafios que um partido como o PS tem o dever de enfrentar, em nome do País e em linha com a sua história de grande partido da liberdade, do progresso e da solidariedade. O que não é desejável é, por um lado, passar por cima da experiência política recente sem uma profunda reflexão crítica sobre a forma de liderança, o eexercício da política como função de um «decisionismo» puro e duro, a anulação progressiva das funções de mediação política orgânica e difusa entre as lideranças e a sociedade civil, o conceito de competição política como dialéctica «amigo-inimigo», de schmittiana memória, a densificação da função política como solução para um exercício político entendido como sistemática fuga para a frente, a revalorização responsável das funções vitais do sistema institucional, político, financeiro e social, demasiadamente importantes para estarem sujeitas a flutuações de humor do líder, a puros cálculos eleitorais ou a simples e incompreensível má gestão das finanças públicas; e, por outro, enfrentar o futuro sem um diagnóstico rigoroso do que já mudou e está a mudar nas sociedades de hoje para poder propor soluções consistentes à altura dos desafios do futuro. E, neste aspecto, o que a liderança de um grande partido político como o PS tem de saber é que a política mudou, a democracia mudou, a economia mudou e a civilização está a conhecer transformações tão profundas que quem não as compreender – ou tentar compreendê-las com os velhos instrumentos – arrisca-se a estar fora do tempo. O que para uma liderança política será muito grave. De resto, estas transformações são tão grandes que começam a ameaçar a própria sobrevivência da União Europeia como grande projecto histórico de uma democracia supranacional de marca europeia e de alcance mundial.
6. Sendo certo que um partido como o PS tem no seu seio muitos militantes altamente qualificados capazes de garantir uma gestão política à altura dos desafios que se lhe vão pôr, não escondo que, na minha qualidade de militante de base, gostaria que ganhasse o partido uma liderança que aliasse uma robusta cultura política com força de vontade e determinação, que aliasse experiência de vida e política com visão estratégica de futuro, mas sobretudo alguém que conhecesse muito bem a natureza das profundas mutações por que as sociedades modernas estão a passar.
7. Não sei, no momento em que escrevo, o que irá a acontecer, mas o que sei é que – mais tarde ou mais cedo – alguém tem de ser capaz de projectar de novo o PS nos caminhos pioneiros que têm feito muita da sua história, de redesenhar uma sua identidade política em linha com as profundas mutações sociais, políticas, culturais e civilizacionais que se estão a desenhar perante os nossos olhos. Seja como for, e para além das emergências com que estamos confrontados, a verdade é que estas mutações civilizacionais que se estão a processar exigem uma liderança capaz de desenvolver um trabalho de fundo em todas as frentes da acção política. E eu estou convencido que o PS tem quadros suficientemente sólidos, preparados e capazes de levar a bom porto esta tarefa tão exigente. É isso, de resto, o que o País espera de um grande partido como é o Partido Socialista.
Por: João de Almeida Santos