1. Nunca percebi porque, para atribuirmos outra respeitabilidade a um escritor, dele dizemos que tem uma visão poética da realidade, do mundo. Ou que a sua prosa não é meramente prosa, mas sobretudo prosa poética. Acaso Paul Celan, poeta, “viu” mais do que Franz Kafka, romancista? Sylvia Plath, Anna Akhmatova, poetisas, alcançaram uma visão superior, que escapou, por exemplo, a Virgínia Woolf, ou Clarice Linspectos, novelistas? E que dizer de Robert Walser, Proust, Mann, Joyce, ou Musil? Será que ficaram aquém da mítica e sublime visão poética dos vates da sua época, muitos dos quais desconhecidos? O mesmo poderia dizer dos romancistas russos. Stendhal, Pound e, sobretudo, T.S. Eliot. O qual já havia intuído que, a partir do século XIX, seria a prosa a assinalar o caminho da nova visão. Isto é, a visão “em prosa” da realidade haveria de deixar para trás a sagrada “visão poética”. Dante, poeta, e Shakespeare, dramaturgo em verso e poeta, “vêem” o que nunca poderá ver Cervantes, narrador e mau poeta (segundo alguns)? Acaso Faulkner, como narrador, “vê” menos que Dylan Thomas como poeta? Nesta arrumação, onde cabe Blake? Em suma, de onde provem essa alegada superioridade da “visão poética” sobre a “visão” narrada em prosa? Já agora, recordemos também as “visões em prosa” dos modernos “videntes clássicos”: Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, três criadores que também “viram” em prosa, sobretudo os dois últimos. A “visão poética” morreu, devido à inanidade da própria poesia, dos seus poetas, incapazes já de enfrentar a complexa realidade do séc. XXI, que requer quiçá uma linguagem cuja construção seja mais universal, mais aberta, mais disposta a assumir todas e cada uma das novas técnicas, das novas tecnologias, que são também instrumentos de linguagem? Acabou a “visão poética”, em benefício da “visão em prosa”? Porquê? Por esgotamento do discurso poético, mais cerrado, carregado de “códigos” antigos, de metáforas gastas, vazias, que já nada significam, uma vez que o seu significado natural, puro, a sua essência, pertence a um mundo antigo, caduco, a uma cultura cujos referentes místico-poético-literários são próprios de outro tempo e de outra linguagem, que já não correspondem às necessidades espirituais e verbais do século XXI? Eis o dilema aqui proposto: será que a presumível vitalidade da “visão” literária em prosa, diante de uma provavelmente esgotada “visão poética”, acabará por a relegar para o limbo do tempo?
2. Lá estava ela. Por baixo de uma cómoda, dentro de uma embalagem de papelão que espreitava, no meio do pó e velharias sem significado. Ao princípio, parecia um simples guarda jóias japonês de madeira lacada, puído pelo tempo. Só quando abri a caixinha percebi tudo. Reflectindo os sinais do tempo, dei com o espelho, na face interior da tampa. E nele um ideograma desenhado, representando o monte Fuji. E também os dois pequenos compartimentos, lá dentro. Um deles fechado, mas com uma tampinha, contendo o mecanismo, ferrugento e já solto. Por cima, havia antes uma bailarina em miniatura que rodava quando aquele era accionado. E que agora lá não estava. A outra divisória, aberta, ainda forrada com veludo vermelho. O espaço ideal para guardar grandes segredos e pequenos valores. Tomado por um sobressalto, cuja origem ainda não era clara nessa altura, peguei novamente na caixa, com cuidado. A trepidação produzida causou um som metálico, quase imperceptível. Como um débil suspiro de quem esteve encerrado anos e anos num recanto esquecido da memória e do tempo. Condenado a uma inutilidade cuja rejeição foi tragicamente silenciada. E que, por isso mesmo, se manifesta ao menor pretexto. A emoção crescia. Peguei no pequeno manípulo usado para “dar corda”, na parte inferior da caixa. Rodei duas vezes. Surpreendido, dei conta que a fina peça metálica, incrustada no parafuso cujo movimento faz girar a engrenagem, rodava timidamente, a espaços. Mas não o suficiente, claro, para um funcionamento “normal” do mecanismo. Faltava ainda o toque de Midas. Não hesitei: umas gotas de óleo em spray fizeram o milagre. E eis que as patilhas de metal percutidas pela bobine dentada começaram a mover-se. A melodia começou. Ou seja, meia dúzia de sons encadeados, que tantas vezes tinham preenchido a minha fantasia de criança. Nos segundos iniciais triunfou a excitação de ter participado num milagre. Mas algo mais estava para vir. Senti-me empurrado bem para o centro dessa infância, para as emoções completas, os gestos completos, para uma alegria brutal, indesmentível, gratuita. Para a voragem do que “ainda já não é”. Incólume, à beira do segredo triunfante. De frente para a face indestrutível do poema.
3. Troquei no Facebook uma série de comentários com um dos promotores de uma “assembleia popular”. Trata-se de uma espécie de assanhada réplica dos acampamentos espanhóis. Uma actividade promovida, como é de esperar, pelo departamento juvenil/recreativo do Bloco de Esquerda. Ora, dei a entender, com algum humor, que prefiro os acampamentos ao ar livre do que estes amontoados insalubres. A resposta foi a indexação da democracia ao excremento, do tipo “isto é tudo uma m…”. Depois, apesar da minha insistência num certo humor, equilibrando o meu natural optimismo com a filiação político-filosófica em Hobbes, lá concluí que isto não está assim tão mau. Ora, caros amigos, o que fui eu dizer! O promotor arrancou de seguida um retrato negro do país. Com milhares de famintos, explorados. E com os inevitáveis banqueiros/corruptos/políticos superintendendo este cenário. Saído directamente de um quadro de George Grosz! Ou seja, uma banda desenhada para simplórios, com os bons e os maus convenientemente instalados. Produzida por quem ainda pensa que ser de esquerda é acreditar nesta fábulas expeditivas. E aí vai basear o seu múnus interventivo.
Por: António Godinho Gil