“Não há cavador só do exterior“ (Ruy Belo, in Toda a Terra)
1.Se não me engano, quase todos os candidatos a Presidente vieram (em pequenas “boutades”) relembrar o “abandono do mundo rural”. Mas creio que nenhum acreditava naquilo que dizia. Ou pelo menos não pensavam bem no que é o mundo rural hoje: aglomerados de casas sem gente, sem economia, sem atracção, mesmo sem alma, que só a presença da juventude dá. Aliás o tema é pouco eleitoral nas campanhas e é chutado logo a seguir para o esquecimento porque, não havendo população rural, não há eleitores rurais e por conseguinte arruadas rurais.
A ideia de mundo rural traz sempre a reboque as pessoas do mundo rural. Aquelas que habitualmente apelidamos de mais simples, mais autênticas, porque mais frágeis ou mais experimentadas no sofrimento. Porque já experimentaram o fel da vida, muitas vezes anos seguidos. Ou porque esse sofrimento fez parte intrínseca da sua natureza de vida. Esse mundo está a desaparecer mas é recordado, en passant, pelos políticos, sem grandes ideias mas com um tom que querem impressivo. A literatura de hoje, urbana e intelectual, encarregou-se também de eliminar esta gente e este mundo do seu foco.
2.Foi o romance campesino do séc. XIX a descobrir o filão, com Júlio Dinis à frente. O neo-realismo tornou este mundo mais seco, com personagens épicas transformadas frequentemente em símbolos políticos, às vezes em títeres da luta de classes.
No entanto, se me interrogar sobre as obras e autores que me ficaram na memória a propósito do mundo rural, confesso que são aquelas e aqueles que me apresentam de modo mais genuíno e humano, às vezes subserviente, mas mais realista e generoso, a relação entre as pessoas (diferentes) daquele meio. É pois o perfil do “camponês” em desaparecimento que me atrai nessas obras. Deixemos as obras supostamente esperadas.
Lembro-me assim das Memórias de Raul Brandão, a recordar os tempos em que o autor foi viver para uma aldeia junto à montanha. Para além do silêncio que só uma aldeia conseguia, “perto de Deus e das coisas eternas”, este homem, citadino, descobriu ali os homens e mulheres que lhe mudaram a visão da vida. Diz ele: “Não posso esquecê-los: parece que todos esperam alguma coisa de mim.”.
Numa edição recente da Univ. Católica (A música de Junqueiro), revisitou-se também a obra de Guerra Junqueiro através de adaptações musicais dos seus poemas, muitos deles dedicados às figuras que mais tarde o Estado Novo exploraria. E assim reganharam encanto e beleza a moleirinha: “Quem será que mói estas farinhas d’oiro / Com a mó de jaspe que anda além no céu!”; e o cavador que se entrega à morte, chegada a sua hora: “Cavou cem montes… que é do trigo? / Gerou seis bocas… que é do trigo?! (…) Bateu a Fome ao seu postigo… Bateu a morte ao seu postigo… (…) Que a paz seja comigo!…”.
Também o cavador do poema de Ruy Belo me vem logo à ideia, com o perfil do cavador a ser mais que o homem que amanha a terra, a ser já a própria terra: “Não há cavador só do exterior / Cava tudo a eito arranca uma pedra tem uma pedra no peito / uma lasca de pedra num olho e é já de terra o seu corpo velho / não há cavador só do exterior.”
3.Poderia desfiar mais autores que me encantaram, sobretudo pelo olhar de comoção ou piedade diante destas figuras que fertilizaram as terras até se transformarem nelas, indiferentes muitas vezes à revolta que supostamente devia nascer dentro deles. Mas são sobretudo poetas ou prosadores do passado, já que a literatura actual se urbanizou sem qualquer sombra de pecado.
Do meu lado, sou também um urbano empedernido embora tivesse vindo desse mundo de hortas e barrocais, aqui perto: que este texto me sirva de acto de contrição. Lá me ficaram dos meus pais três ou quatro prédios com os quais não sei o que fazer.
Parece que já não há gente nas aldeias, apenas números curtos de cadernos eleitorais, números a apagar-se, um mundo a encerrar. A não ser que haja um milagre.
Por: Joaquim Igreja