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Complicar o que é simples

Passos Coelho quer aumentar os poderes do Presidente, inventando problemas que não existem e complicado o que tem sido simples. A Constituição e a política têm tratado de resolver as situações de crise institucional.

Ainda não conhecemos em pormenor a proposta de revisão constitucional do PSD. Sabemos pelo menos três coisas: que quer aumentar os poderes do Presidente da República, aumentar os mandatos do Presidente e da Assembleia, retirar da Constituição a universalidade do Serviço Nacional de Saúde e à Escola Pública e liberalizar completamente os despedimentos através da substituição da “justa causa” por “razão atendível” (que é tudo e coisa nenhuma).

Por hoje, fico-me pelos poderes presidenciais, deixando para amanhã o que mais me interessa: o ataque ao Estado Social que permitiu um salto sem precedentes nos indicadores de saúde e educação deste país.

Primeira nota: o PSD defendeu, nas últimas décadas, a redução dos poderes presidenciais. É curioso que mude de posição quando, pela primeira vez desde o 25 de Abril, tem um Presidente da sua cor. Diz muito da consistência do pensamento constitucional deste partido.

Com excepção dos Estados Unidos, muito pela sua natureza federal, e a França, com uma forte presença executiva do Presidente, todas as democracias mais maduras dão prevalência ao Parlamento. Porque ele representa a diversidade política e porque não tem uma natureza unipessoal. Porque nele existe poder e oposição.

O sistema semipresidencial português tem razões históricas: a necessidade de garantir um árbitro claro num ambiente ainda muito conturbado. E, não por acaso, esse papel foi desempenhado por militares até à eleição de Mário Soares. Correspondia ao compromisso pós-revolucionário.

No entanto, e bem, os poderes do chefe de Estado foram sendo reduzidos e fomo-nos afastando do sistema francês, que, apesar de diferente do nosso, fora o modelo. Até porque ele fomenta conflitos institucionais desnecessários.

O sistema que temos é equilibrado. O Presidente, com a legitimidade do sufrágio directo (e não, como na maioria das repúblicas europeias, dependente de eleição parlamentar), limita-se a nomear o primeiro-ministro sem qualquer intervenção relevante na formação do governo. Tem o poder de chamar a governar quem entender, desde que tenha em conta os resultados eleitorais, mas a realidade política retirou-lhe esse poder de facto, sendo hoje impensável nomear outra pessoa que não seja o líder do partido mais votado. De resto, reduz-se ao mínimo a sua capacidade presidencial de interferir na governação quotidiana, que responde antes de mais perante os deputados.

Para o Presidente é reservado o direito de veto de leis quase simbólico e o único poder realmente relevante que mantém: o de poder dissolver o Parlamento. Aquilo a que na gíria politica se chama de “bomba atómica”. O Presidente pode também demitir o governo e nomear um novo, sem ir a eleições. Mas isso só sucede em casos extremos: quando esteja em causa o regular funcionamento das instituições.

Diz Passos Coelho que não faz sentido que haja maior facilidade em dissolver o Parlamento do que em demitir o primeiro-ministro. Pois eu acho exactamente o contrário: considerando que o governo depende do Parlamento, define-se que é casos normais só ele o deve fazer cair. Aí, o poder do Presidente é de moderador. A sua intervenção deve acontecer em casos limite e nesses casos é preferível que não dispute legitimidade com os deputados, também eleitos. Ele é visto como árbitro e não como uma parte. Em princípio, resolve o problema devolvendo aos eleitores a palavra.

O nosso sistema é suficientemente equilibrado para levar os presidentes a apenas dissolverem o Parlamento quando interpretam que este já não corresponde à vontade popular e, desde Ramalho Eanes, a não caírem em aventuras de governos de iniciativa presidencial.

Ou seja, foi a prática política, mais do que a Constituição, que acabou por impor a perda de poderes presidenciais, levando a que a demissão de um primeiro-ministro correspondesse a novas eleições. O único caso pós-Eanes em que um Presidente decidiu nomear sem eleições um novo primeiro-ministro (e neste caso por indicação do anterior, que saiu por vontade própria) correu muito mal. Ficou quatro meses no lugar. Ou seja, Passos Coelho está a tentar garantir na Constituição um reforço de um poder que a política naturalmente recusou.

Como vimos no caso da AD, no governo minoritário de Cavaco e no governo de Santana as eleições confirmaram o rigor e a ausência de voluntarismo das opções feitas pelos presidentes quando dissolveram o Parlamento: no primeiro caso, deram o primeiro lugar ao PS, confirmando a suspeita de Eanes de que a coligação de direita já não tinha apoio popular; no segundo, deram a maioria absoluta ao PSD, confirmando a suspeita de Soares que não deveria dar o poder à esquerda, que então contava com maioria parlamentar; e no terceiro deram maioria ao PS, confirmando a suspeita de Sampaio de que Santana não tinha legitimidade política. A proposta de Passos Coelho é a de quem não aprendeu com a realidade política.

Não sou constitucionalista, mas parece-me evidente que o poder arbitral do Presidente, tal como existe, corresponde às necessidades do País. Evita-se que o Presidente intervenha demais durante uma legislatura e permite-se que faça o “reset” quando a situação é insustentável. A alteração proposta, fazendo, na prática, que o governo dependa da legitimidade presidencial e parlamentar em simultâneo, só criará ruído. E, muito provavelmente, nunca será usada. Porque só pode produzir governos fracos.

Por outro lado, com a imposição da moção de censura construtiva, o PSD quer, na prática, retirar ao Parlamento a possibilidade de fazer cair um governo com o objectivo de criar condições para provocar eleições antecipadas. Ou seja, ao mesmo tempo que aumenta, sem qualquer necessidade, os poderes do Presidente, reduz os poderes políticos da Assembleia. Em qualquer dos casos, tenta resolver um problema de instabilidade inexistente para dificultar soluções rápidas para situações politicamente insustentáveis.

Para se perceber, fica um exemplo hipotético. Imaginemos que Cavaco Silva não queria eleições antecipadas, porque não morre de amores por Passos Coelho. O parlamento só poderia fazer cair o governo se encontrasse uma solução alternativa. Como não há uma maioria de direita, nada se poderia fazer a não ser esperar pelo Presidente. Ou então boicotar a governação até que José Sócrates se demitisse. Alguém está convencido que isto favoreceria a estabilidade? Não é evidente o poder excessivo que isto daria ao Presidente?

Por: Daniel Oliveira

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