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A muralha é de todos

Na Guarda, a problemática da reabilitação urbana e da salvaguarda do património, com destaque para o núcleo histórico, tem merecido alguma atenção e pouco debate sobre o que deve ser e como deve ser defendido, resultando daí muitas acções com pouco acerto e muitos erros.

Não é raro darmos connosco a pensar que a teoria difundida e a prática das intervenções concretas se apresentam desfasadas senão em total desacordo.

Vem isto a propósito das obras de recuperação que decorrem numa pequena edificação adossada à face exterior da Muralha, junto à porta d´El-Rei e que, por ignorância ou capricho do projectista, ocupam e escondem um pano de muralha que anteriormente era visível e fruível como património da cidade.

Ocorre aqui à memória que, há uns anos atrás, reabilitar uma casa antiga significava recuperar e limpar a fachada, retirando-lhe os elementos descontextualizantes, como portas e janelas de alumínio, estores exteriores de plástico, marquises dissonantes, etc., enquanto o interior enfrentava uma demolição quase certa. Os custos eram menores e o desenho não chegava a ser um desafio. Contudo, há já alguns anos que o fachadismo é objecto de contestação, havendo em Portugal muitos exemplos do avanço que se deu para um novo patamar de intervenção arquitectónica, valorizando-se as técnicas tradicionais de construção e a morfologia dos edifícios e dos conjuntos urbanos.

No caso da pequena casa que aqui nos motiva a voz, parece não ter havido qualquer avaliação histórica do local nem respeito pelo envolvente, como o não houve pela própria Muralha enquanto património colectivo e valor de memória.

No núcleo histórico da Guarda existem muitas casas antigas, cujo interior e exterior não pode ser destruído por acções incúrias de projectistas que seguem o pressuposto da afirmação do novo, sem cuidarem de evitar anacronismos, quer na forma quer nos materiais utilizados, com péssimos resultados a curto prazo. É necessário encontrar soluções de equilíbrio entre as exigências da vida actual e um património material que, em análise final, é de todos nós e assim deve continuar.

Não se pode aceitar que a Muralha seja simplesmente ocupada e até danificada por uma construção que não respeita a sua própria forma, antes se assume pela ruptura e pela afronta ao edificado numa zona tão sensível como é a proximidade da Muralha Medieval.

Estamos, sem dúvida, perante um projecto de reconstrução erróneo, não só pelos prejuízos que causa ao património colectivo da cidade, como pela introdução de elementos novos, geradores de ofensa ao equilíbrio volumétrico anterior.

Aquela intervenção veio chamar a atenção para a urgência de desenvolver estudos claramente direccionados para a defesa dos valores presentes no Centro Histórico da Guarda e da necessidade de tais estudos terem o contributo do Restauro Urbano Integrado, uma vez que não podemos continuar a aprender, lentamente e de modo empírico, quais os valores que devem ser defendidos, quando se intervém na parte mais antiga e mais representativa da identidade colectiva dos guardenses. Essa dificuldade sobressai com particular importância quando estão em causa redes de solidariedades urbanas e valores de património intangível afectados por fragilidades que acentuam a necessidade da sua protecção.

Não conhecemos o autor do projecto nem procurámos conhecê-lo, porque não nos movem motivos de natureza pessoal, apenas não podiamos eximir-nos de dar o nosso contributo para um debate que deve fazer-se com o objectivo de enriquecermos os nossos conhecimentos e podermos fazer melhor por aquilo que é de todos. Estamos certos que o mesmo terá eco junto dos guardenses.

José A. Quelhas Gaspar, Guarda

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