São quase 11 horas da manhã, de um domingo cinzento de eleições para o Parlamento Europeu. Se as sondagens estiverem certas, a abstenção será maioritária, o que significa que muitos terão decidido ficar em casa, ou ir de férias e fazer ponte, ou terão decidido não se incomodar com a questão. Tem sido muito debatida a pretensa opção pela abstenção em todo o tipo de eleições mas, na verdade, não há apenas uma opção por detrás da abstenção, há várias, o que faz com que o seu peso político seja difuso e o seu impacto impossível de mobilizar. Aqueles que apostam na abstenção como verdadeira opção política que se desenganem; a abstenção não constrói nada, quando muito dá sinal de desconforto e mau estar na cidadania. É por isso que se torna inevitável dar atenção aos argumentos que apontam para a degradação da qualidade da política e o défice democrático, sob pena de iludirmos sinais preocupantes da vida em comum na Europa e em cada um dos países membros da União Europeia. É importante saber das múltiplas (des)motivações que deixam as pessoas em casa e saber distinguir o que é mero desinteresse e comodismo, do que é o legítimo sentimento de impotência que leva muitos a dispensar a escolha e a considerá-la sem sentido. Não é de admirar que este tipo de consideração saia reforçado no caso das eleições para o Parlamento Europeu, quando o contacto com as políticas europeias (e com a própria União) se resume a uma vaga ideia da transferência de fundos financeiras que a maioria nunca viu nem sabe onde foram parar. Como em qualquer eleição, contudo, quem não escolhe sujeita-se às escolhas dos outros.
Mas há muitas considerações que é preciso ter em conta para perceber a abstenção, considerações que dificilmente sairão das sondagens ou dos estudos empíricos tão em voga e tão em consonância com uma visão científica da política. Nos últimos anos, tornou-se demasiado cómodo apelar a explicações consideradas evidentes para justificar o desinteresse próprio e o dos outros, evitar pensar nos assuntos da política a sério e depois expressar o desprezo pelos seus intervenientes através do megafone privilegiado que é a comunicação social. De facto, expressões como “são todos iguais”, “querem todos o mesmo”, “só querem é tacho”, dão mostras de um tipo de julgamento colectivo tão irresistível quanto injusto, pois o dia-a-dia da política e da governação, como de qualquer outra actividade, dá mostras dos mais variados comportamentos, positivos e negativos, louváveis e reprováveis. As simplificações são sempre instrumentos do comodismo intelectual, nivelando uma realidade contraditória que não conseguimos abarcar em toda a sua complexidade. Mesmo reconhecendo que há problemas graves e muito a fazer para reformar o sistema eleitoral, o sistema judicial, a coerência e integração territorial, e que alguns casos que envolvem os protagonistas da política são, no mínimo, desesperantes.
Os apelos ao voto podem bem multiplicar-se, mas o que se vai consolidando é a desconfiança face ao essencial da política. Para muitos, a lógica de confronto inerente à política — confronto de ideias, propostas, pessoas e visões do mundo — é negativa em si mesma e, por isso, essa lógica deve ser uma excepção no tempo e deve dar lugar à conciliação. A nostalgia das sínteses definitivas está bem presente quando muitos dizem não ter partido, ou não serem nem de direita nem de esquerda, ou simplesmente não gostarem de política. A lógica do confronto de ideias é difícil de aceitar quando não se oferece, em troca, um final feliz e definitivo para os problemas da sociedade. A lógica do confronto político recorrente, sem fim à vista, que é mero processo de tentativa e erro sem garantia de sucesso é tida como reprovável porque opõe pessoas que, pretensamente, teriam todas as razões para se unirem. A maioria de nós não compreende porque não acaba finalmente a política, quando a sua principal vocação seria a sua própria dissolução através da realização da sociedade da felicidade perpétua. Daí essa forma de encarar a política nos dias de hoje, confrontada com problemas e desafios pouco tradicionais, como algo que se tolera com dificuldade e que se penaliza através das eleições como se pertencesse e aproveitasse a outros.
Numa Europa alargada em que a história da participação política é muito escassa e reduzida, vale ainda a pena lembrar que, em muitos casos, o voto ainda é uma das poucas formas de participação cívica. Devido ao peso imenso do estado, à falta de dinamismo da sociedade civil ou até às muitas formas de censura desta pelos aparelhos oficiais de governação, a participação política está ainda muito limitada ao formalismo da escolha de listas dominadas (quase) inteiramente pelos directórios centralizados dos partidos políticos. Se é verdade que a cidadania precisa de ser mais consciente das suas responsabilidades inerentes à política como conjunto de escolhas da sociedade para a sociedade, também é inegável que é essencial encontrar mais espaço de expressão e participação política fora dos canais oficiais dominados pelos partidos e pelos políticos profissionais.
Por: Marcos Farias Ferreira