O mundo dele morreu, mas ele recusa-se a morrer com ele. Quer ser testemunha muda e implacável daquele crime, daquela usurpação.
Naqueles dias estreitos e enervantes, em que tudo está contra tudo e nada acerta com nada, apetece-nos espaço para fugirmos ao tempo. Então, faço de mim a meta da minha marcha e vou andar. Às vezes, escolho para caminhar aquela parte da cidade do centro que é velha, suja e escondida. Atravessada por gente que fala as muitas línguas em que diz a sua febre de viver, esse bairro tem becos fechados e ruas íngremes por onde sobem o esforço e a tristeza. Aí, as antigas lojas foram, uma a uma, substituídas por novas lojas de novos donos, com novas caras, que vendem novos produtos.
Numa das ruas por onde costumo passar, dessas antigas lojas, sobrou só uma. É uma drogaria que parece ter para vender apenas o pó que a cobre. À primeira vista, pensa-se que está fechada. Tem uma montra cujos vidros, de tão sujos, mal deixam ver o que lá está – restos dos restos do que um dia existiu. Mas acerta-se o olhar e, a custo, vê-se, dentro da loja, um homem idoso, magro e curvado, envergando uma bata desbotada.
Quando alguém, inadvertidamente, entra pela porta, o homem, desconfiado e agreste, faz o olhar de espanto que um fantasma faria ao ver quem o não é. Depois, desvia de imediato o olhar e dobra a cabeça sobre o balcão, fingindo que está a fazer contas, para que o intruso saia. Se ele não sai e faz perguntas, começa por não lhe responder; se as perguntas não desistem, a boca do droguista abre-se num eco que repete a palavra Não! Percebe-se que detesta ser importunado. Vê-se que gosta de estar ali sozinho, sem que ninguém lhe venha lembrar que aquilo é uma loja e que as lojas vendem. Nota-se que tudo o que acontece lhe é contrariedade. O homem, com a sua bata que um dia foi azul, passa o dia atrás de um balcão inútil, a olhar as prateleiras vazias e a temer que lhe venham fazer perguntas ou pedidos.
A horas certas do dia, atravessa a loja com passadas lentas e vai à porta espreitar a rua. Tem no rosto uma defesa perante o que possa daí vir. Sabe que o que vier não será bom. Sabe que querem sempre comprar o que ele não tem. Sabe que cada raro cliente que ali vai é o representante de uma humanidade de que ele se foi separando. Odeia os donos das lojas vizinhas. Odeia aqueles produtos de muitas cores, de muitos brilhos, de muitas luzes. Odeia os compradores com os sacos cheios por quinhentos escudos, na sua moeda, a antiga. O mundo dele morreu, mas ele recusa-se a morrer com ele. Quer ser testemunha muda e implacável daquele crime, daquela usurpação. Quer odiá-los diariamente a partir do seu posto de observação.
Podia fechar a loja e ficar em casa. Mas fazer isso era fazer sua a derrota que os outros lhe destinam. Ele não se rende e resiste. Resiste, sem concessões a novos produtos e a novos clientes. Resiste, sozinho, na sua loja cheia de pó, sem nada vender. Vai para lá todas as manhãs, porque todas as manhãs se vai para onde se deve ir. Sai de lá todas as tardes, porque todas as tardes, se sai de onde se deve sair. Como nos velhos tempos, todos os dias a drogaria abre e fecha pontualmente. Ela é, para o seu dono, uma vingança que lhe prolonga a vida, uma causa que lhe produz efeito, um motor que lhe provoca movimento, um alvo que lhe gera a vontade de o alcançar. Aquela loja vazia, com restos e pó, é-lhe um refúgio, um esconderijo, uma trincheira. Uma justificação, uma resistência, um sentido. Um destino e uma dignidade. Tem a porta aberta, mas está fechada. Tem uma montra, mas nada mostra. Existe para vender, mas não vende nada. Ele parece que lá não está, mas está lá.
Aquele homem seco, cada vez mais seco, e a sua atitude atrás do balcão, esperando que nada aconteça, porque tudo o que lhe acontece é mau e incomoda, figuram uma filosofia. Aquele droguista no seu posto inútil, representa uma das mais desacreditadas, ocultas e constantes actividades humanas: a de não esperarmos nada do mundo para que o mundo não espere nada de nós.
Dentro daquelas quatro paredes de uma casa escura, situada numa rua suja que sobe para um velho largo, perto de uma capela onde as mãos se erguem em frente de uma imagem de Mulher para pedir saúde, aquele homem alcançou uma renúncia que lhe é uma dádiva. Ele não espera nada e ficaria enfurecido se Godot lhe entrasse pela drogaria dentro.
Quando passo àquela porta, vejo um símbolo do grande orgulho humano no corpo magro e curvado daquele droguista que, em tempos, vendeu quilos de sabão amarelo e litros de lixívia e, agora, se ergue todas as manhãs para provocar o mundo com um desencanto que não desiste.
Por: José Manuel dos Santos