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Em defesa do jornalismo

No dia 31 de Março de 2004 o então primeiro-ministro Durão Barroso sentou-se na cadeira do apresentador do “Telejornal” da RTP e disse: “Hoje, vou apresentar um telejornal só com notícias positivas”. Os presentes, que o acompanhavam na inauguração das novas instalações da televisão pública, riram da graça de um político que não tem entre as suas qualidades o sentido de humor.

Na realidade a coisa era bem mais séria do que aquilo que provavelmente todos imaginavam. O que Durão Barroso tinha dito correspondia a uma ideia de fundo e antiga que parte da classe política tinha, e tem, da sua relação com os media. A saber, de que estes têm a obrigação de alinhar na construção de uma nova e diferente imagem da realidade: o país positivo.

Para esta ideia o Portugal reflectido pelos media deveria ser uma mistura de Suécia com a Quinta do Lago, de excelentes serviços públicos e turismo de cinco estrelas, de Estado eficiente e clima mediterrânico. Neste paraíso os hospitais não tinham listas de espera, as escolas ensinavam, a sinistralidade era inexistente, a corrupção uma miragem e a miséria uma recordação distante do salazarismo.

Como há sempre uns teimosos a olhar para a realidade como ela é, foi adicionada àquela ideia uma outra, menos voluntarista. A de que o poder político, sendo legitimado pelo voto popular, se deve impor aos poderes não eleitos. Entre estes encontra-se a comunicação social, o chamado quarto poder, o qual estaria a assumir um peso na sociedade que colocava em causa a legitimidade do poder eleito.

Esta tese aplica-se igualmente a outros poderes que não vão a votos, como o económico e o judicial. Inscreve-se numa discussão, que não existe em Portugal, sobre a essência da democracia, a qual reside no equilíbrio e independência dos poderes constitucionalmente consagrados, sejam eles eleitos ou não. Como essa discussão não existe estas ideias fizeram o seu caminho.

Do lado do poder esse caminho foi feito até hoje pelo reforço do condicionalismo legal ao livre exercício do jornalismo e pela descarada tentativa de controlo dos media. Isto a somar a uma sofisticada organização de tudo o que está a montante do jornalismo, ou seja, assessores, consultores, técnicos de imagem e outros especialistas em “marcar a agenda”, condicionar os jornalistas e, sobretudo, dar-lhe aquilo de que eles precisam, ou seja, a “informação trabalhada”. Que tipo de informação já é outra história.

Do lado do jornalismo a evolução foi em sentido contrário. Face à brutal campanha feita contra os media os jornalistas passaram à defesa, incapazes de reflectir, como grupo, sobre o que se estava a passar do outro lado, de perceber que as fontes se tinham armado com conhecimento e meios para tratar, manipular e condicionar a informação. Esta atitude defensiva soma aos problemas estruturais da actividade: grupos de media frágeis, redacções no limite, grande rotatividade de jornalistas, precaridade de emprego e a chocante promiscuidade dos profissionais que transitam entre redacções e assessorias de imprensa, deixando pelo caminho um rasto de suspeição.

Este texto não tem espaço para citar todos os grandes pensadores que defenderam a liberdade de expressão como uma matriz vital da própria liberdade ou enumerar os grandes estadistas que por ela se bateram. Só um regime democrático fraco e doente teme a liberdade, incluindo a liberdade de imprensa. É mil vezes preferível o excesso dessa liberdade que a mordaça que lhe querem colocar. Infelizmente é neste ponto que estamos.

Por: Luís Marques

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