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Tábua de Marés

“Hotel de Província”

pelo Teatro das Beiras

Texto: Aleksandr Vampilov (trad. Luís Nogueira)

Encenação: Gil Salgueiro Nave

Pequeno Auditório do TMG, dia 6 de Fevereiro

Alguém sabe o que é um compaginador? A partir desta simples questão, a peça mostra-nos o estrépito do desmoronamento de um edifício complexo e aparentemente imutável: o dos pequenos poderes, exercidos em regime de autocracia, num estabelecimento hoteleiro nos confins da Rússia soviética, pelo respectivo director. O hotel aparece na estrutura dramática como a alegoria de um sistema hierático, asfixiante. Alicerçado em regulamentos absurdos e não menos absurdos sistemas de controlo social: o estalinismo. Ao fim ao cabo, o “local do crime” perfeito, o micro-mundo deveras apetecível para os micro-poderes se imporem, numa espiral de arbítrio e prepotência. Um canto esquecido pela geografia, porém lembrando as virtualidades mais aberrantes do regime. Por sinal, a pesada e labiríntica estratificação da sociedade russa não foi uma invenção do comunismo. Só para dar um exemplo, desde o tempo de Pedro o Grande, os oficiais públicos dividiam-se em 14 patentes e cada nobre poder-se-ia inscrever em 6 registos!

Falar-se em “excesso de zelo”, por parte do funcionário menor que administrava o hotel, é em si mesmo um pleonasmo. É que o zelo pressupõe um permanente equilíbrio na sua condução, um bom senso imanente que nos leva a concluir que a diligência ou existe ou não. O “excesso” de certa forma apaga-o, é já “outra coisa”. Neste caso, transforma-se no delírio persecutório de um “big brother” de província, cuja escala menor não diminui, antes pelo contrário, e seu modus operandi característico. Um delírio que nada respeita, que tudo devassa. Fazendo cumprir uma série de regras kafkianas que se alimentam de si próprias. Que tornam todos os hóspedes reféns de uma contingência ou de um capricho, impostos por um sistema cujo rosto visível é, na circunstância, o do funcionário / administrador. Este, por sua vez, embora detenha o poder supremo no interior do espaço, exerce-o não por si, mas como uma adesão a um conjunto de regras que só de forma caricatural se poderão fazer valer e respeitar. E cuja iniquidade se faz notar particularmente pela subalternidade de quem a executa.

Um dia, todo este edifício vai ruir, a partir de uma simples dúvida: a suposta identidade de um hóspede. Quem será? Que poderes representa? Que ameaças pode infligir? O texto original de Vampilov intitulava-se precisamente “Incidente com um compaginador”. O que revela o ênfase dado pelo autor ao caso. E que confere o tom geral de comédia à peça. A partir do nascimento do equívoco, tudo se altera. A incerteza e o medo instalam-se. O funcionário é o seu demiurgo. O tal que chega a renegar o passado e tudo aquilo em que acreditava até aquele momento. Numa sequência alucinante, que mais faz lembrar certas passagens de “A Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstoi, do que os dramas de Tchekov, como se anuncia no programa. Significativamente, à medida que o funcionário – aqui “doente imaginário” por empréstimo – tenta salvar a sua alma e colocar-se a salvo de uma hipotética fiscalização promovida pelo “compaginador”, a mentira que ele sustentava acaba por vir ao de cima, numa espécie de catarse mais própria da tragédia.

Sobre o espectáculo, embora de uma indiscutível seriedade, é claro que algumas opções cénicas utilizadas são discutíveis. Na circunstância, fiquei com a impressão de que uma leitura demasiado clássica da peça diminuiu o seu potencial expressivo. Em certos momentos, parecia estar a assistir a uma sessão de teatro de Boulevard fora do contexto, não só devido ao cenário, em contradição com o tema, mas sobretudo por causa do registo da representação. A qual me pareceu bastante desigual e demasiado próxima de tipos, em lugar de personagens. Ou seja, onde se impunha o acentuar do exagero triunfou o tom inexpressivo, e onde a malícia ou a estultícia aconselhariam a versatilidade, imperou o estereótipo.

Em suma, a última produção da Companhia “Teatro das Beiras constitui um momento de teatro bem disposto e competente quanto baste. Mas acaba prejudicado, de alguma forma, pelo registo encontrado.

Benjamim Tehoval

Percussão, harmónica, bateria e voz.

Inblues – Festival de Blues da Guarda

Café concerto do TMG, 5 de Fevereiro

Tehoval é um “one man show” francês, capaz de executar quatro instrumentos ao mesmo tempo: a guitarra, a harmónica, percussões e um pedal de bateria. Prossegue assim uma poderosa tradição musical trovadoresca, destinada a animar pequenos espaços e pequenos auditórios. E que, numa linguagem como os blues, tem toda a razão de ser. Todavia, o seu projecto afirmou-se como um dos mais originais na cena internacional do género. O seu virtuosismo permite-lhe alternar, como tivemos ocasião de comprovar neste concerto, entre os clássicos e as suas próprias composições. O seu domínio do palco não passa desapercebido às audiências em geral e ao público especializado do blues, do jazz e do folk.

O músico executa temas que vão desde Robert Johnson e Muddy Waters a Chuck Berry, passando por composições de Bob Dylan, com o feeling e a pose das épocas que assistiram ao apogeu desta música. Conhecido do público de jazz pelas suas aparições no festival “Nancy Jazz Compulsion”, Benjamin é um personagem reconhecido igualmente pelo público do rock, devido às suas participações no “L’Echo des Bananes” e em festivais, para além da sua colaboração com Wilco Johnson, ex Dr. Feelgood. O público folk habituou-se a apreciar também as suas interpretações de temas tradicionais, onde intervém uma singular autenticidade. A sua longa e singular carreira converteu-o assim num artista de culto, quer pela sua imagem como multi-instrumentista que soa como uma banda, quer pela forma despretensiosa como compõe e faz chegar a sua música. E foi isso precisamente o que o público deste concerto pode testemunhar, de forma calorosa. Esta edição do “Inblues – Festival de Blues da Guarda começou pois da melhor maneira. Uma prova mais de que o fogo dos blues ainda queima e Benjamin Tehoval é um dos guardiães da chama.

Por: António Godinho Gil

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