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As vinhas da ira

Fui Juiz por escolha e sou produtor de uvas por tradição familiar. Na Beira Alta, mais concretamente no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, freguesia da Vermiosa.

Ao longo do tempo e com as flutuações próprias da agricultura, as vinhas iam cumprindo a sua função, sucedendo-se os anos – melhores, uns, outros piores -, sem particulares razões de queixa. Feita a média, e apesar dos queixumes, não havia prejuízos de monta a assinalar.

Mas de há cerca de cinco anos a esta parte tudo mudou. A crise gravíssima que, desde então, passou a afectar o sector vinícola na região das Beiras, tem originado situações dramáticas de dificuldades económicas para a generalidade dos pequenos e médios produtores que se dedicam ao cultivo da vinha. Contrariamente ao que se possa pensar, a causa fundamental dessa crise não radica, porém, em maus anos agrícolas. Na verdade, a causa real da crise resulta do péssimo funcionamento de algumas Adegas Cooperativas, especialmente no que concretamente se refere à comercialização e expansão do produto no mercado. Sobrecarregadas com despesas exageradas com pessoal manifestamente excedentário, afogadas em dívidas, atingiu-se uma situação sem remédio à vista.

As uvas são pagas tarde e a preços ridiculamente baixos, muito inferiores ao custo da produção. O que significa o caminho para a insolvência.

Desesperados com a situação, angustiados com as perspectivas de gestão da Adega – têm-se sucedido Direcções que nada resolvem –, os produtores cooperantes receberam a publicação da recente Portaria nº 701/2008, de 29 de Julho, que veio instituir um regime de prémios para o arranque de vinhas como uma saída compensadora da situação de pré-falência em que se encontram. E é a corrida desenfreada – e penso que pouco reflectida – às candidaturas para o arranque das vinhas.

Só que, como era natural, a situação criada e vivida em concelhos onde a sofreguidão pelo arranque é maior, porque maiores são as carências dos vinicultores, está a originar situações inaceitáveis, impróprias de um país que se quer minimamente desenvolvido. Desde logo, o prazo concedido pela Portaria para apresentação das candidaturas até 5 de Setembro é inaceitavelmente exíguo: um escasso mês em plena época de férias de muitos dos funcionários dos serviços, a que acresce a invasão de emigrantes. Ademais, sem pré-aviso nem preparação mínima, decidiu-se aproveitar esta “corrida” ao arranque para concretizar a legalização de todas as vinhas e torná-la absolutamente indispensável. Ou seja: a subsistência de uma única discrepância, ainda que ínfima, entre a área plantada e a área licenciada, numa só vinha que nem sequer seja destinada ao arranque, será motivo suficiente para impedir a candidatura ao arranque para todas as vinhas, mesmo que regularizadas, do mesmo titular.

Compreende-se a intenção de legalizar todas as vinhas. Todavia, esse objectivo deveria ter sido anunciado em tempo, com lealdade e sobretudo com formação adequada dos serviços, dentro de um prazo razoável, distinto do prazo fixado para as candidaturas ao arranque. O que está a acontecer é uma verdadeira desumanidade, com contornos de fraude: aproveita-se o estado de necessidade – e a angústia – dos produtores, para lhes exigir a prévia legalização de todo o seu parque vinícola. O que, como toda a gente sabe, é impossível – salvo em casos raros de quem tenha apenas uma ou duas vinhas – até ao dia 5 de Setembro!

Nem se diga que a lei prevê que o regime do arranque prossegue nos dois próximos anos. É que o montante dos subsídios previstos para os segundo e terceiro anos são substancialmente inferiores. E como se obriga à manutenção das vinhas destinadas a arranque, tal representa um duplo prejuízo que empobrece ainda mais quem já pobre está…

Para cúmulo, neste momento e com estas imposições, ainda não foi publicado o diploma que definirá a quantia a pagar para efeitos de legalização. Quer isto dizer que os produtores não dispõem sequer de dados que os habilitem a fazer contas para concluir se os prémios pelo arranque compensam as “multas”, coimas” ou “taxas” devidas pela legalização das parcelas irregulares…

Resulta da situação exposta que, nas Delegações Agrárias chamadas ao cumprimento desta, para já, “missão impossível”, e muito particularmente na de Figueira de Castelo Rodrigo, onde acabo de passar três dias inacreditáveis, se vive um ambiente surreal, com centenas de pessoas inscritas a aguardarem atendimento, durante dias seguidos por horas a fio, em condições de crescente mal estar que levavam a inevitáveis afrontamentos que situações destas sempre geram, à medida que o cansaço e o nervosismo se apoderam das pessoas, temerosas de não serem atendidas depois de mais um dia de extenuante espera.

Para piorar as coisas, durante o atendimento – quase sempre puramente formal e feito debaixo da maior pressão, graças à colaboração de dois técnicos da Régua, ali deslocados, – o sistema informático colapsava repetidamente, deixando tudo parado durante largas horas. E que dizer das repetidas buscas manuais de processos, licenças e demais papéis com dezenas de anos, muitas vezes transviados ou perdidos?

A triste realidade terceiro-mundista vivida, cuja descrição só pecará por defeito, permite evidenciar as seguintes constatações: 1º a revelação de um universo fechado, pouco esclarecido, envelhecido nos promotores da actividade e pouco ambicioso quanto ao futuro (mormente quanto à qualidade do produto final), uma vez que a maioria são produtores de uva totalmente dependentes do bom desempenho das Adegas, na sua maioria, cooperativas, cujo sistema está em evidente colapso; 2º o notório desfasamento e insensibilidade do Ministério nas suas deliberações e instruções relativamente à população activa neste concreto ramo de actividade cujas fracas aptidões olimpicamente ignora.

Neste particular, Bruxelas e as suas directivas pertencem a outra galáxia.

Só não consigo compreender como os partidos da oposição não estão a acompanhar o drama social e humano que está a ser vivido por tanta gente cuja idade lhes não permite já outras oportunidades de vida nas terras esquecidas da Beira Alta.

Sugiro, por isso, a atenção do vosso jornal no sentido de acompanhar e, se possível, tentar evitar o desmoronar de um tipo de economia de uma região que, em tempos, deu característica e nome ao distrito da Guarda.

José Augusto Sacadura Garcia Marques

Juiz Conselheiro do STJ (Jubilado) e viticultor na Vermiosa

Sobre o autor

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