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O leitor ideal

Selecção…Natural

1. O leitor ideal é o escritor no instante anterior à escrita. O leitor ideal não reconstrói um texto: recria-o. O leitor ideal tem uma capacidade ilimitada de esquecimento. O leitor ideal sabe aquilo que o escritor só intui. O leitor ideal subverte o texto. O leitor ideal não se fia na palavra do escritor. O leitor ideal procede por acumulação: cada vez que lê um texto, agrega uma nova capa de memória ao conto. Todo o leitor ideal é um leitor associativo. Lê como se todos os livros fossem a obra de um único escritor, prolífico e intemporal. Ao fechar um livro, o leitor ideal sente que, se não o tivesse lido, o mundo seria mais pobre. O leitor ideal é como Joseph Joubert, que arrancava dos livros da sua biblioteca as páginas que não gostava. O leitor ideal tem um sentido de humor perverso. O leitor ideal lê como se toda a literatura fosse anónima. O leitor ideal usa com prazer o dicionário. O leitor ideal julga o livro pela sua capa. Paolo e Francesca não eram leitores ideais, já que confessaram a Dante que, depois do primeiro beijo, não leram mais. O leitor ideal tinha dado o beijo e continuava a ler. Um amor não exclui o outro. O leitor ideal partilha a ética de Dom Quixote, o desejo de Madame Bovary, o espírito aventureiro de Ulisses, a desfaçatez de Zazie, enquanto dura a narração. O leitor ideal é politeísta. Robinson não é um leitor ideal. Lê a bíblia para encontrar respostas. O leitor ideal lê para encontrar perguntas. Todo o livro, bom ou mau, tem o seu leitor ideal. Para o leitor ideal, todos os livros são, em certa medida, a sua autobiografia. O leitor ideal tem uma nacionalidade precisa. Às vezes um livro deve esperar vários séculos para encontrar o seu leitor ideal. Blake precisou de 150 anos para encontrar Northrop Frye. Pinochet, ao proibir Dom Quixote por temer que o livro pudesse ler-se como uma defesa da desobediência civil, foi o seu leitor ideal. “Há três classes de leitores: a primeira, aqueles que gostam de um livro sem o julgarem; a terceira, aqueles que o julgam sem gostarem dele; a outra, entre as duas, os que julgam apesar de gostarem ou gostam apesar de julgarem”, disse Goethe, numa carta a Johann Friedrich Rochlitz. Os leitores que se suicidaram depois de lerem Werther não eram leitores ideais e apenas meros sentimentais. O leitor ideal deseja chegar ao fim do livro e, ao mesmo tempo, que ele não acabe. O leitor ideal é (ou parece ser) mais inteligente que o escritor. E por isso não o diminui. As boas intenções não fazem leitores ideais. O Marquês de Sade: “só escrevo para quem pode entender-me, e estes leram-me sem correrem perigo”. O Marquês de Sade enganou-se: o leitor ideal corre sempre perigo. O escritor nunca é o seu próprio leitor ideal. A literatura depende, não de leitores ideais, mas de leitores suficientemente bons.

2. Não escrevemos com as palavras com que escrevemos mas com as escolhas que tomamos como nossas. Aprecio o silêncio com que a revelação me chega. Haveria poema, se antes tivera havido poeta. O poema faz o poeta na mesma matéria argilosa onde o poeta constrói o seu poema. Parece igual quando a comunhão é perfeita, quando o poema irrompe naturalmente do braço que o fez. Mas nem sempre isso acontece. Por vezes o poema, ou o poeta, chegam tarde, digamos, tarde de mais. E aí a escolha levanta-se branca, negra. O poema sem poeta? O poeta sem poema? Em nome da vida que levamos, escolheria o poeta. Nova dúvida: a vida que levamos sobreviveria sem poema, sem poesia? Novamente me confundo, e é voluntariamente que o faço. Aqui haveria poema (e poeta) se antes tivera havido poesia. De seguro tenho apenas que a vida que levamos, ávida de desejo, fantasia e sonho, não sobreviveria sem poesia. E mesmo sendo incréu de alguma religião ou vício colectivo do espírito devo perguntar: como chegará a nós esta poesia essencial da vida? Através do poema, certo. Porém, na expressão de todos os tempos e mundos, há também quem nos tenha feito sentir que tudo o que nos cerca pode ser poema. Se antes, nos nossos olhos e sentidos ainda não calcinados, tiver havido poesia. Então, se tudo pode ser poema e a poesia em tudo residir, se ela não é algo que nos chega, mas à qual arribamos, qual o lugar do poeta neste mundo? Não falo apenas do poeta, daquele que se descobre na descoberta da poesia originária deste mundo, esse poderemos ser todos nós. Falo agora, e apenas agora, exclusivamente, do poeta-poeta. Aquele que talhou as suas próprias mãos à medida do objecto que os seus gestos visionários iluminam. Não interessa o material, o objecto, apenas as mãos. Eis a resposta. Olhemos as do poeta, escavadas na renúncia, no compromisso, no afecto chão e altaneiro por este mundo. Indaguemos aí exemplo e luz. Ou apenas a escuridão que nos falta. Mas procuremos nelas, nas mãos verdadeiras do poeta, a outra vida que buscamos.

Por: António Godinho

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