Para que serve um concelho?

Escrito por Daniel Joana

Etimologicamente, a palavra “concelho” atira-nos para o reino do coletivo. Do anti-individualismo. “Concilium”, o bisavô latino no nosso vocábulo, queria dizer – sem surpresas – concílio, assembleia, reunião, associação. Se quisermos: uma roda de gente a gerir, várias cabeças a deliberar, o nós e o nosso a sobrelevarem-se ao eu e ao teu.

Nos primórdios da nossa História um concelho era para as pessoas, acima de tudo, sinónimo de proteção. Por oposição aos territórios de “senhorio”, onde o poder era exercido discricionariamente por um nobre poderoso, foram criadas as comunidades concelhias, com autonomia considerável, e em cujo território a aristocracia não podia exercer arbitrariamente as suas prerrogativas. Os concelhos não genufletiam perante um senhor, respondiam diretamente ao rei, o poder central. Por conseguinte, os monarcas protegiam os concelhos, até porque os concelhos (enfraquecendo o poder territorial dos grandes senhores) acabavam por servir de proteção à monarquia. Isto na Idade Média, quando Portugal se formou.

A partir do século XIX, e com especial preponderância na segunda metade do século XX, os concelhos tornaram-se em Portugal agentes do progresso material descentralizado. A estrada, a pequena ponte, os primeiros edifícios escolares… depois as redes de saneamento, os postos médicos, as bibliotecas públicas, os centros culturais, os cinemas municipais, as piscinas, os estádios… tudo teve a mão coletiva da política concelhia. Era preciso que se fizesse e se fizesse “aqui”, no concreto de um território para o concreto de uma comunidade.

Em consequência os concelhos tornaram-se células centrais da nossa identidade. Por isso mesmo, muito mais que o nome da freguesia, é o do concelho que tende a colar-se, como por antonomásia, ao identificativo de muitas pessoas comuns, passando por apelido. Na minha velha equipa de juvenis jogava o Sernancelhe, um extremo veloz. Na faculdade tínhamos o Póvoa (de Varzim), um barra a Latim. E não raras vezes ouvi o meu pai falar de Borbas, Lamegos e Mirandelas do tempo da tropa. A raiz da nossa identidade é municipalista. A troika cortou nas freguesias, mas nos concelhos não se atreveu a mexer com o seu dedo frio centro-europeu.

Posto isto, e mesmo que mudados os tempos, os concelhos são hoje (deveriam ser!) um compósito proativo dos seus sedimentos históricos. Isto é, núcleos territoriais de proteção, progresso material e identidade.

Por um lado, espaços de proteção social e progresso físico, muitas vezes ao arrepio dos interesses de certos poderes globais (os “senhores” dos nossos tempos) e de lógicas estritamente financeiras. Espaços que garantem a dignidade humana por via do acesso universal a serviços e equipamentos essenciais à vida civilizada. Portanto, espaços de qualidade de vida.

Por outro, hão de ser ainda – e este parece-me ser o maior desafio municipal dos tempos futuros – manancial de uma identidade diferenciadora e geradora. Fonte de uma força cultural e psicológica que potencia o desenvolvimento por via das múltiplas realizações das suas empresas, instituições e cidadãos (territoriais e afetivos). Espaços de uma ação que faz sentido. Que faz sentido precisamente por ocorrer “ali” e não num qualquer outro lugar.

Ter consciência da profundidade deste papel é uma obrigação para todos os que exercem, coletivamente, o Poder Local nos nossos 308 concelhos.

P.S.: Para saber mais sobre a fascinante origem dos concelhos recomendamos o capítulo II da “História de Portugal”, do Professor Rui Ramos, pelo punho do historiador Bernardo Vasconcelos e Sousa.

Sobre o autor

Daniel Joana

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