A exposição Depósito: Anotações sobre Densidade e Conhecimento, comissariada por Paulo Cunha e Silva, e agora patente na Reitoria da Universidade do Porto, opera de súbito o milagre de nos ressarcir da inanidade do pobre tijolo, pousado na sala vazia, que vem alimentando os últimos estertores de um vanguardismo sem saída. Descerrada com muita daquela solenidade que teria agradado a Beethoven, e que repõe a emoção comunitária da inauguração do monumento, a mostra reabilita um cúmulo de objectos aparentemente heteróclitos, escolhidos no ‘inconsciente colectivo’ da Universidade, e articulados, sendo isto o que torna a empresa sobremaneira arrebatadora, pela simples pertinência ao olhar de quem foi desencantá-los do sono.
Minerais e fósseis, folhas de herbário e modelos de cogumelos, insectos e peixes e reptéis e aves, mamíferos e vasos gregos, múmias e figurações dermatológicas, frascos e balanças e microscópios, máquinas e maquinetas, obras de arte e teses de doutoramento, eis o que se conforma no mais envolvente dos painéis, e que nos faz esbarrar num relance com a própria existência, e com a sua irremediável, mas assombrosa decomposição. É num engenho cenográfico que semelhante excesso se vertebraliza, e falar de ‘excesso’ a este propósito equivale a rejeitar o novelo de cotão como proposta exangue, trazendo-nos à lembrança o paradigma dos grandes teatros quinhentistas e seiscentitas, o dos Gonzaga de Sabbioneta, ou o dos Farnese de Parma.
Se quiséssemos desentranhar algo do que de mais fascinante se tem produzido em linhas idênticas, iríamos buscar por certo os trabalhos de Charles Matton, criador do escanzelado quarto de William Burroughs, reduzido à dimensão de cinquenta e um por quarenta e um por cinquenta centímentros, e do ateliê desoladíssimo de Francis Bacon, de medidas idênticas a estas. O que ele nos oferece, enganadoramente ao invés da magnificência do mural da Reitoria da Universidade do Porto, é esse talento de encapsular na elasticidade de um espaço, minúsculo ou gigantesco, o itinerário vital que se apreende num ápice.
A instalação que se pode admirar até Julho próximo no Porto, cidade quase sempre mais empolgada pelos seus projectos do que confortada pelas suas realizações, concretiza-se ainda num manual ilustradíssimo para o uso de todo e qualquer ficcionista. De facto apenas mediante a travessia de um gabinete de curiosidades assim, ilusoriamente claustrofóbico, é que se acede a mais que a elementar cornucópia de «ready-mades» que povoam o sotão que andamos a arrastar. E não deixará isto de aproveitar a inúmeros ofícios, o de actor e o de bailarino, o de músico e o de artista plástico, o de trapezista de circo, e o de sacerdote de vária religião. Confrontados com os climas que os acompanham desde o princípio, e ainda com os que enquadraram os seus antepassados, derivarão «tutti quanti» se deslocarem à Reitoria da Universidade do Porto a raridade de uma exemplar vertigem no seio do Inverno.
Mas é claro que não se recomenda a visita a críticos insossos, nem de uma maneira geral a pessoas nervosas.
Por: Mário Cláudio