«Percepções e realidade» é o título do livro que Pedro Santana Lopes publicou há pouco tempo. Afinal, trata-se da história de quatro meses e meio de governo, contada, dois anos depois, por um dos principais protagonistas (o outro é Jorge Sampaio). A história é simples: de que modo duas decisões erradas são corrigidas por uma outra decisão ainda mais errada. As duas primeiras são as seguintes: 1) a aceitação por Santana Lopes da sua indigitação para Primeiro-Ministro; 2) a indigitação, por Jorge Sampaio, de Santana Lopes para o cargo de Primeiro-Ministro. Tive ocasião, na altura, no «Diário Económico», de dizer por que razão a indigitação não deveria ser feita: no essencial, há que reconhecer que a política se está cada vez mais a personalizar, assumindo a figura do candidato a primeiro-ministro a função de agente fiduciário do contrato eleitoral, em efectiva representação dos próprios partidos, programas e dirigentes perante os eleitores. Ou seja: a natureza da política modificou-se profundamente, por força da alteração da própria natureza do espaço público, lá onde os media, em particular, os media electrónicos, passaram a desempenhar uma função decisiva para o reconhecimento da proposta política através de agentes fiduciários, em particular através da figura do líder. Por isso, com a saída de Durão Barroso, Sampaio deveria ter convocado novas eleições. Não o tendo feito, e tendo dado posse a Santana Lopes, cometeu um grave erro, com muitas faces: deu posse a quem não tinha legitimidade política (que não formal) para formar governo, acabando por lhe impor ilegitimamente condicionamentos que o determinariam duplamente, interna e externamente. Internamente, porque o vínculo institucional entre Presidente e Primeiro-Ministro ficou distorcido por uma espécie de «liberdade condicional», concedida pelo primeiro ao segundo, e por um claro condicionamento das opções políticas estratégicas; externamente, porque esta situação viria a dar força aos poderes informais que se opunham ao novo poder político, gerando fortes tensões na «pressão ambiental». O funcionamento destes dois efeitos é claramente perceptível em toda a narrativa de Santana Lopes. O caso Marcelo, a que o autor reconhece enorme importância, é exemplar e demonstra o efectivo condicionamento do Primeiro-Ministro por um Presidente que não hesita, de acordo com as palavras de Santana Lopes, em pedir a cabeça de um Ministro, Rui Gomes da Silva (o outro caso fora o de Armando Vara, durante o segundo governo de Guterres), por este ter publicamente criticado, de forma dura, o famoso comentador da TVI. Este caso, ligado e somado à espalhafatosa saída do Ministro Henrique Chaves, viria a constituir a gota de água que faria transbordar o copo do Presidente Sampaio, levando à queda de um governo que Santana Lopes considerava motivado, trabalhador, decidido, rápido nas decisões e sólido no apoio parlamentar e partidário que exibia. Ou seja: Sampaio corrigia o erro que cometera em Julho com outro erro igualmente grave, ao exonerar um governo que podia exibir uma sólida base parlamentar, abrindo um grave e perigoso precedente de activismo político presidencial. Na opinião de Santana Lopes, nada de substancial se passara, para além de pequenos episódios terrivelmente empolados pela generalidade dos media, que justificasse a dissolução da Assembleia da República. O caso Marcelo é, de todos eles, o mais significativo. Com efeito, o famoso comentador acabou por fazer uma imaginativa e destrutiva síntese política de duas intervenções sobre as suas prestações dominicais: a crítica pública do Ministro Gomes da Silva e a interpelação pessoal de Pais do Amaral. Essa síntese consistiu numa aparatosa autodemissão do comentador em nome da liberdade de imprensa. Se formos verificar o impacto mediático deste caso, poderemos constatar que, de facto, se tratou de um dos maiores casos de empolamento mediático de que há memória na imprensa do nosso País. Dou alguns números para fundamentar o que acabo de dizer: em quatro dias, sete jornais dedicaram ao assunto 347 peças jornalísticas, 101 páginas completas de jornal, 22 editoriais e 17 manchetes. Palavras, para quê?!
A verdade é que estes quatro meses e meio da história do nosso País acabaram por representar o elevado preço que sempre acaba por se pagar quando o poder político não pode exibir uma sólida legitimidade e, por isso, fica à mercê das mais variadas subjectividades e poderes: desde as mais altas instâncias institucionais até aos poderes informais da sociedade. É por isso que se torna necessário reflectir com seriedade sobre a natureza da democracia moderna, em tempos onde as mutações são rápidas e profundas e onde, consequentemente, as formas deixam rapidamente de corresponder aos conteúdos. Mesmo as formas de tipo constitucional, como se verificou neste caso. Não chega dizer que «Deus escreve direito por linhas tortas»!
Por: João de Almeida Santos