1. Agora que o mano Costa está de saída para parte incerta, chegou a altura dos créditos. Pois o homem que adorava levantar cheques de Bruxelas tem um pergaminho que mais ninguém pode disputar: criou uma fórmula inédita de governação em Portugal: a deputocracia. Acompanharam-no no expediente, dentro do seu partido, as franjas ferristas vascolourencizados, a tralha socratina, alguns jovens turcos cheguevarizados, à espera da sua vez, os camaradas César, Medina e Ana Catarina, factotum dedicados. De fora, contou com a prestimosa ajuda dos gerontes estalinistas penosamente reciclados, de um grupo de moças bordadeiras, a quem alguém injustamente chamou de esganiçadas, do “docente” Nogueira, que vendeu cara a trégua, do Dr. Vital, um dos putativos pais da constituição e gramsciano no activo, do Dr Pacheco, verdadeiro mentor da aventura, recolector de papel e comentador televisivo nas horas vagas, de algumas almas crentes e com propensão para fixações no âmbito da erotomania, de Rui Tavares, ex futura promessa da política na III República, and last but not least, alguns milhares de entusiastas, muito activos nas redes sociais e em escritos nas casas de banho. A ver vamos se, depois de Março, vamos ter uma paella à espanhola. Gimme five, bro!
2. Quem nasceu e cresceu tendo pouco, quer ter muito e triunfar graças ao espólio que reuniu. Para poder ter ainda mais: um bom carro, uma vivenda xpto, influência, uma família adorável, notoriedade qb. É o exemplo do que chamo “ter para ser”. Depois, existem aqueles que, embora sem grandes recursos materiais e intelectuais, conseguem manter-se à tona, brilhando pela discrição. Mas sempre à espreita de poder amealhar. Trata-se do “ser para ter”. Existe também um escol de afortunados, constituído por aqueles que, embora não precisando de ter porque já têm, se centram no ser. Um luxo. É o que se poderia chamar “ser para ser”. Também não faltam os que, no binómio, se autoexcluiram do que julgam ser um diagnóstico, mas não dos seus sintomas. Exemplificam o “ter para ter”. Por último, há o anarca. Que define mais uma qualidade do que um género. Um género mais do que um tipo. Para o anarca, o que conta é o momento. Gozar o que se tem é tão importante como não lamentar o que se não tem. O ser é só uma morada, não uma essência. O anarca revolta-se tendo ou não tendo, mas tão só porque o lugar não lhe agrada. Como sabe que o ter é passageiro e o ser uma ilusão, nunca despreza as possibilidades que um e outro lhe oferecem. Mas nunca depende delas. A máxima do anarca é “ter para não ter”.
3. O novo logo oficial do Governo custou 37 mil euros. O escudo de armas e a esfera armilar desapareceram. Segundo os adjudicantes do design, o símbolo, “sem os castelos conquistados aos mouros” e a esfera da expansão ultramarina é mais “inclusivo” e “ecológico”. As críticas não se fizeram esperar. A oposição de direita acusa o governo de wokismo e afronta à história e à cultura nacionais. E com inteira razão. A indignação vai-se estendendo em largos sectores. Por causa de uma decisão aparentemente inócua, o PS pôs-se a jeito.
4. Coloco cada palavra na mesma luz e na mesma tonalidade de cinzento. Uma tonalidade algures entre a cor de um velho tapume e a cor de uma nuvem baixa. A diversidade é o meio onde cintila o meu espírito. A economia profundamente humana onde descrevo os meus personagens. Suspensos. Hesitantes. Amantes do jogo. Prisioneiros da cor do pormenor. Da vida derramada como aguarela. Onde os faço banhar numa bruma verbal delicadamente irisada. Seres encantadores e ineficazes. Criaturas bizantinas e patéticas. Que vão desbaratando uma existência provinciana. Encarcerados numa bruma de sonhos utópicos. Sabendo reconhecer perfeitamente o que vale a pena ser vivido. Mas atolando-se na lama de uma existência monótona. Idealistas inúteis. Sedutores por tédio. Heróis detentores de uma bela verdade humana. Fardo esse que não podem carregar nem evitar carregar. São personagens que tropeçam. Que tropeçam porque olham para as estrelas. Enquanto caminham. Que podiam sonhar, mas não governar. Que perdem todas as oportunidades. Que se furtam a qualquer acção. Que passam noites em claro. Concebendo mundos que não podem construir. São os Davids franzinos numa era de Golias rubicundos. São aqueles que nos podem resgatar. Sem condições. São eles os habitantes das paisagens desoladas. Dos salgueiros mortos nas bermas das estradas lamacentas. Dos corvos cinzentos, dilacerando os céus cinzentos com as suas asas cinzentas. Do vapor de alguma lembrança inesperada, emanando subitamente de uma banalíssima esquina da rua. Da penumbra patética. Da fraqueza encantadora. De todo um mundo cor de cinza, cor de rola. De partidas adiadas e regressos não anunciados. É deles que eu me nutro.
* no calendário vegetal celta, significa “sabugueiro”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia