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A cultura está na rua

Lembro-me bem da primeira vez que ouvi um disco de Nick Cave. Bom, «ouvir um disco» talvez seja uma expressão exagerada. Eu estava completamente disposto a gostar de Nick Cave, convencido de que ia adorar Nick Cave, desesperado por descobrir a música de Nick Cave. Pus o disco de vinil a rodar no Fuji lá de casa, coloquei a agulha e – horror! pavor! – aquela música parecia-me intragável. Pior: insuportável! Ainda verifiquei se o botão das rotações (33 ou 45, lembram-se?) estaria na posição correcta, mas ao fim de alguns minutos desisti. Confesso: não consegui ouvir o disco todo, nada que se pareça. Também tive algum azar: aquele Your Funeral, My Trial não era certamente o disco do músico australiano mais acessível a alguém que adorava ouvir, repetidas vezes, o The Wall dos Pink Floyd.

Hoje, sou fã de praticamente tudo o que Nick Cave foi fazendo ao longo dos anos. E, por acaso, nunca me apetece pôr o The Wall a tocar.

Quer isto dizer que, felizmente, vamos fazendo descobertas, acumulando referências, alterando gostos, aprendendo. Somos nós, a cada momento, mas somos já outros no momento seguinte. Vem isto a propósito, tardiamente, da discussão que, na Guarda, gravitou em torno da expressão infeliz «é preciso dar ao povo o que o povo quer».

Ensaiar uma espécie de dicotomia entre Festas da Cidade (o que o povo quer) / Programação do Teatro Municipal (o que alguém – Intelectuais? Artistas? Elitistas? – quer e o povo não quer) é o pior serviço que se pode fazer a toda uma estratégia que, inteligentemnte, deu origem à empresa municipal Culturguarda e ao TMG. Que seja o próprio munícipio a propiciar essa confusão é, no mínimo, estranho, confuso. Façam-se as Festas (tenho belas recordações das noites quentes do Parque), com mais ou menos ‘pimbas’ em cima do palco, e mantenha-se o alto nível de qualidade da programação do TMG. Propiciem-se até (porque não?) sinergias entre as «festas» e a estrutura do TMG. Tudo exactamente para o mesmo universo, o mesmo «povo»: todos nós.

A expressão «dar ao povo o que o povo quer» é em si mesma tão tautológica que se torna vazia, quase anedótica. Mas, atrás dela, vem sempre o mesmo tipo de ideologia, essa sim elitista (porque implica sempre um o «nós» e o «eles»): aquela que arrasta, inevitavelmente, a programação de televisões comerciais generalistas para a mediocridade e, mesmo, imbecilidade. Pensarão os responsáveis da SIC que exibir sucessivas telenovelas da Globo ao longo do dia é «dar ao povo o que o povo gosta»? Provavelmente sim, e isso não deixa de ser uma falta de respeito pela independência e vontade dos espectadores. Todos.

Quanto a dinheiros, é outra conversa. Claro que, no País ideal, todos os investimentos num bom equipamento cultural de uma pequena cidade seriam justificadíssimos e bem aplicados. Esse país ideal – bem o sabemos todos – não existe. É, por isso, preciso encontrar um equílibrio entre despesas controladas e a estratégia de programação que se quer aplicar. Mas que ninguém pense que uma estrutura como a Culturguarda/TMG desata a dar lucros e receitas a torto e a direito (isso só acontecerá nos sonhos mais cor-de-rosa de Rui Rio).

Falta dizer que quem me emprestou aquele disco de Nick Cave foi o actual responsável pela programação e direcção artística do Teatro Municipal da Guarda. Muita da programação (não toda, claro) resulta, penso eu, desse mesmo impulso e entusiasmo genuíno de Américo Rodrigues em partilhar descobertas, proporcionar encontros e revelações. Confundir esse profissionalismo altruísta com o elitismo e arrogância de que, por vezes, é acusado, parece-me que é ver todo o filme ao contrário. Quando Américo diz algo como «se só se dá ao povo o que ele gosta deixa de haver cultura», ele está apenas a revelar os riscos do mais puro e estéril imobilismo e a dizer a todos «ousem descobrir». Não tenho dúvidas de que a vida cultural da cidade da Guarda nas útlimas duas décadas tinha sido inteiramente diferente (para pior, entenda-se) sem o trabalho e a entrega de Américo Rodrigues nas várias funções que já teve. E isto, que pode parecer desproporcionado, não se pode dizer de muita gente, em muitas cidades.

Crescemos com as descobertas que fazemos, com o que se cruza nas nossas vidas. Podemos ter o azar de crescer num contexto que não potencia ou não permite grandes revelações. E claro que podemos optar por não querer descobrir nada de nada. Mas somos sempre nós quem fica a perder.

Por: Pedro Dias de Almeida

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