Em 2007, aquando da comemoração do centésimo aniversário da inauguração do Sanatório Sousa Martins, o Governo de então, através do ministro da Saúde (Correia de Campos), anunciava a continuidade da Maternidade da Guarda. Isto após a polémica surgida com um anunciado plano de reestruturação das maternidades, articulado com a constituição do Centro Hospitalar da Beira Interior, que integraria os hospitais da Guarda, Covilhã e Castelo Branco.
O ministro da Saúde garantia que o Hospital da Guarda iria manter a sua maternidade, «por ser a de maior atividade de toda a Beira Interior», deixando em aberto o futuro dos blocos de partos dos hospitais da Covilhã e de Castelo Branco, com a justificação (na altura) de que não era «uma matéria da competência do Governo», mas sim das respetivas administrações hospitalares.
Alicerçando as suas afirmações no projeto de requalificação que estava já anunciado, o ministro acrescentaria, nessa mesma sessão realizada nesta cidade, que «ao Governo não parece legítimo atrasar a Guarda por amor ao distrito irmão mais do Sul»…
Estávamos em 2007. Hoje, e como é do conhecimento dos leitores, o possível encerramento da Maternidade da Guarda volta à ordem do dia, após a proposta de encerramento da Comissão de Acompanhamento de Resposta às Urgências de Ginecologia/Obstetrícia. Após esta notícia, e conhecidas reações mais ou menos exacerbadas, o atual ministro da Saúde (numa entrevista à RTP) assegurou que até ao final deste ano nenhuma maternidade vai encerrar… E em 2023?…
Ao fazermos uma retrospetiva das últimas décadas, e apesar das sucessivas promessas políticas, a Guarda tem “adoecido” progressivamente em matéria de saúde (para ficarmos por aqui…), numa área onde foi já cidade de referência nacional e internacional, escola de formação credenciada…Ironia do destino, tanto mais que se completam na próxima terça-feira, 25 de outubro, 71 anos após a morte de uma personalidade que a cidade guarda na memória.
À última rainha de Portugal, D. Amélia, se deve aquele que foi, na primeira metade do século passado, um dos principais ex-libris da Guarda da saúde. De facto, o Sanatório Sousa Martins ficará perenemente ligado à Rainha D. Amélia, pelo eminente papel que teve na sua criação; empenhada nas causas sociais, dispensou particular atenção aos doentes e aos mais desfavorecidos.
Maria Amélia Bourbon e Orléans nasceu em Twickenham, arredores de Londres em 28 de setembro de 1865 (curiosamente o futuro marido, D. Carlos, nasceu também no mesmo dia, dois anos antes). A filha mais velha de Filipe de Orléans (conde de Paris e chefe da Casa Real de França) e de Isabel de Montpensier, que se encontravam, à altura, exilados em Inglaterra, apenas foi viver para França em 1871. Nos anos seguintes, Amélia de Orléans viajou com frequência e frequentou os principais palácios das monarquias europeias; personagem culta, apreciava o teatro, a ópera, a pintura e a leitura, convivendo, em Paris, com os escritores mais eminentes da época.
Em 1886 conheceu D. Carlos, herdeiro da coroa portuguesa, de quem veio a ficar noiva, nesse mesmo ano; o casamento ocorreu em 22 de maio, em Lisboa, onde cedo manifestou as suas preocupações face ao flagelo da denominada “peste branca”.
A sua atenção às questões culturais manifestou-se por diversas formas sendo a criação do Museu dos Coches Reais, em 1905, uma das mais expressivas traduções dessa postura. Amélia de Orléans viveu em Portugal entre 1886 e 1910, num período social e politicamente muito complexo, em que soube superar muitas contrariedades e definir uma estratégia de auxílio às camadas sociais com menores recursos. A Assistência Nacional aos Tuberculosos, de que o Sanatório da Guarda foi a primeira unidade hospitalar, constituiu, nesta matéria, uma das obras mais relevantes da Rainha D. Amélia.
«Para a tuberculose como para outros tantos males, há meios na ciência para, se não os conjurar, ao menos diminuir os seus estragos e remediar os seus efeitos», como afirmou, em 1900, numa das suas intervenções públicas. Na sua cruzada contra a tuberculose, a Rainha procurou, por vários meios, canalizar recursos financeiros para combater a doença; a receita da venda do livro “O Paço de Sintra”, escrito a seu pedido pelo Conde de Sabugosa, e que foi ilustrado com desenhos feitos por D. Amélia, foi um dos muitos contributos para essa causa, de que o Sanatório da Guarda foi um destacado pilar.
D. Amélia, acompanhada pelo Rei D. Carlos, veio à Guarda em 18 de maio de 1907, aquando da inauguração do Sanatório a que atribuiu, como homenagem, o nome do médico Sousa Martins (que falecera em 1897).
A vida da Rainha ficou tristemente marcada pelo regicídio ocorrido, em Lisboa, em 1 de fevereiro de 1908, de que resultou a morte do Rei D. Carlos e do herdeiro D. Luís Filipe, Príncipe da Beira; com a aclamação de D. Manuel II, como Rei de Portugal, a 6 de maio de 1908, D. Amélia passou a colaborar nos atos da governação. Em julho de 1910, a Rainha, na qualidade de Presidente da ANT, veio de novo à cidade mais alta de Portugal, numa visita, muito discreta, ao Sanatório e à filha do Conde de Tarouca, que ali estava internada. Implantada a República, em 5 de outubro de 1910, a Rainha D. Amélia foi forçada ao exílio; começa por se instalar em Woodnorton (Inglaterra), residência do irmão, e em janeiro de 1911 passou a viver em Richmond Hill.
No Verão de 1921 mudou-se para França; a nova residência situava-se em Chesnay (nas proximidades do Palácio de Versalhes), numa mansão designada por Château de Bellevue. Em 1939 foi convidada por Salazar para vir para Portugal, mas a Rainha não aceitou e passou os anos da segunda Guerra Mundial em França, onde não esqueceria as suas ligações ao nosso país, tendo hasteado mesmo a bandeira portuguesa na sua residência. Seis anos depois, em maio de 1945, veio a Portugal e foi recebida de forma apoteótica; entrou na fronteira de Vilar Formoso a 17 de maio de 1945, na véspera de se comemorarem 38 anos após a inauguração do Sanatório Sousa Martins.
A Rainha D. Amélia faleceu em Chesnay (Versalhes) na manhã de 25 de outubro de 1951; o seu corpo seria transladado para Portugal, em março de 1952, tendo ficado no Panteão Nacional.
A Câmara Municipal da Guarda não esqueceu a importância que ela teve para a cidade e decidiu, a 5 de dezembro de 1951, atribuir o nome da última rainha de Portugal ao troço da estrada nacional nº 18 que ladeava o Sanatório e o extremo da Rua Batalha Reis.
Ao evocarmos esta efeméride estamos a relembrar um capítulo da história guardense, onde a luta pela existência de estruturas e serviços de saúde foi inquestionável, gerando uma centralidade que muitos ignoram ou esquecem; atitude que demonstrou ser possível a afirmação citadina, mesmo em conjunturas pouco favoráveis, por diferenciados fatores.
Uma centralidade esquecida…
“Ao fazermos uma retrospetiva das últimas décadas, e apesar das sucessivas promessas políticas, a Guarda tem “adoecido” progressivamente em matéria de saúde (para ficarmos por aqui…), numa área onde foi já cidade de referência nacional e internacional, escola de formação credenciada…Ironia do destino, tanto mais que se completam na próxima terça-feira, 25 de outubro, 71 anos após a morte de uma personalidade que a cidade guarda na memória.”