Arquivo

Culpas no kartódromo

observatório de ornitorrincos

Almas poderosas e visionárias contemplaram o furacão Katrina como um castigo de Deus ou do progresso. É a primeira das sete pragas a atingir o Egipto deste novo milénio. Ou a segunda, se considerarmos Yoko Ono. O discurso sobre a raiva da natureza é uma personificação vinda da alma de quem, se pudesse, faria o mesmo. Uns acabariam com o imperialismo americano, que se presume ser a habilidade natural dos cidadãos dos EUA para tirar imperiais, outros poriam um fim ao vício que percorria as ruas, as casas e os rios da Louisiana ou do Mississipi. Mark Twain já tinha mostrado que nada de bom se podia esperar do Missouri ou do Mississipi quando escreveu sobre Tom Sawyer e Huckleberry Finn, dois miúdos que gostavam mais da brincadeira e do passeio do que propriamente da escola e da disciplina familiar. Para mais, Huck não usava sapatos e fez-se amigo de um escravo preto fugido à lei. A direita evangélica e a esquerda multicultural, embora por razões diferentes, mas igualmente idiotas, tinham afinal razão em proibir a leitura de Huckleberry Finn nas escolas. Estes dois grupelhos – que se odeiam mutuamente – detestam ainda com mais força aquilo que a América representa. Quando Michael Moore e Pat Robertson estão do mesmo lado, eu sei imediatamente que devo estar do outro.

Se há várias razões para admirar a atitude expansionista dos Estados Unidos, a principal é Nicole Kidman, nascida no Hawaii, o 50º estado da União. Sem a anexação dessa ilha, a actriz teria nascido na República Federativa da Micronésia ou num anexo do Kiribati e hoje talvez ainda estivesse casada com o sonso do Tom Cruise e fosse a embaixatriz da Cientologia nas Ilhas Tonga. E não está provado que só pelo facto de ter vivido na Austrália alguma vez se teria despido daquela maneira no filme Eyes Wide Shut. Além disso, se a América não tivesse crescido para Oeste, hoje a Califórnia seria povoada por mexicanos e os estados do midwest não passariam de territórios praticamente despovoados. Impensável.

Da mesma forma sensata que tal gente avisada atira culpas a administração Bush pela fúria devastadora que passou por Nova Orleães, eu quero aqui lamentar os desastrados efeitos que as propostas legislativas de Ana Drago tiveram sobre a rosca da torneira da água fria da minha casa de banho – agora veda mal. A torneira.

O verão que agora vai acabando foi pródigo em críticas à ausência dos líderes das nações enquanto os países se perdiam para a eternidade. Sócrates no Quénia, Portugal em chamas. Bush no rancho, Biloxi no dilúvio. Chirac no hospital, emigrantes no forno. Má época para os anarquistas, boas novas para o jacobinismo. Afinal, sem o poder forte de um estado centralizado tudo se desmorona. Sem o chefe do governo nacional não temos salvação possível. Jornalistas e outros donos da virtude que não se cansam de nos mostrar a ridícula incompetência de quem manda são os mesmos que choram à noite quando ficam sozinhos sem o apoio paternal de presidentes e primeiros-ministros. Os homens e as mulheres anónimos deste mundo não vão, como se costuma dizer, a lado nenhum só por si. Nem sequer a uma polémica com Eduardo Prado Coelho têm direito se não forem suficientemente conhecidos. No máximo, consegue-se uma reportagem do 24 Horas à porta do hospital depois de ter feito uma vasectomia para desencravar a unha de um dedo do pé. E a culpa, óbvio, é do elevado preço do crude.

EU VI UM ORNITORRINCO

Manuel Maria Carrilho

Diz que são as pessoas que mais o preocupam. É político e filósofo. Pensa que engana quem?

Por: Nuno Amaral Jerónimo

Sobre o autor

Leave a Reply