Sociedade

Vila Franca das Naves disputa herança milionária

População contesta habilitação da Misericórdia de Trancoso como herdeira de testamento de Carmen Rios Domingues, que deixa milhões para beneficência e educação

Foi com estupefação que a notícia foi recebida em Vila Franca das Naves. Carmen Augusta Rios Domingues natural da vila e há muitos anos radicada em Lisboa, falecida a 17 de maio de 2016, solteira e sem familiares conhecidos, deixou em testamento milhões em «bens, direitos ou ações». A herança foi registada pela Santa Casa da Misericórdia de Trancoso (SCMT) mas a população de Vila Franca das Naves contesta o registo e considera-se como o verdadeiro e legítimo herdeiro dos milhões da herdeira do comerciante galego Germano Vicente Domingues e de Delmina Rios Domingues.
Se o quinhão destinado a alguns «afilhados de batismo» e «amigos» aparece devidamente identificado pela testadora (de dinheiro para uns, à coleção de joias para uma “velha” amiga), o grosso da herança é legado à população através de uma comissão assistencial extinta ou, «na sua falta, à entidade congénere existente naquele concelho e que tenha a seu cargo a organização de assistência, com a obrigação de destinar toda a sua herança a uma instituição de assistência particular, com sede em Vila Franca das Naves, do mesmo concelho, que terá a denominação de “Instituição de Assistência Rios Domingues”», lê-se no testamento lavrado em Coimbra, a 16 de abri de 1965, e a que O INTERIOR teve acesso. Entretanto, e porque a Comissão Municipal de Assistência de Trancoso foi extinta em 1971 e os seus ativos foram destinados à Misericórdia, esta habilitou-se como herdeira do património legado em 2018.

A polémica está ao rubro e os vilafranquenses reuniram-se em assembleia popular no passado domingo, no Centro Cultural Miguel Madeira. Algumas centenas de pessoas sufragaram a posição do Centro Social de Vila Franca das Naves e aplaudiram a tomada de posição que irá passar, no imediato, por interpor uma ação judicial. Segundo José Joaquim Martins, filho da terra e juiz de profissão – que ali estava em nome pessoal –, desta forma se «impedirá o registo da venda de bens». Para o magistrado, «é triste que esta senhora tenha deixado um testamento e que até agora nada foi cumprido». José Joaquim Martins lamenta mesmo que a vontade da testadora «e os seus desejos devidamente manifestados não sejam partilhados com a população». Refere-se nomeadamente à expressão testamentária segundo a qual a família Rios Domingues pretende prestar «uma justa homenagem ao bom povo de Vila Franca das Naves e povos vizinhos».

A herança deverá estender «obrigatoriamente a sua ação às povoações de Vila Franca das Naves, Cerejo, Moimentinha, Póvoa do Concelho e Vilares», as localidades de onde eram originárias as pessoas que trabalharam para os pais da benemérita, e «interessar-se, sobretudo, pela assistência à velhice e à infância», lê-se ainda. Apesar do desconhecimento objetivo do valor da herança, os intervenientes na assembleia falaram sempre em «dezenas de milhões de euros». Mário Gonçalves, engenheiro civil, «vilafranquense dos quatro-costados» e antigo responsável pelas infraestruturas escolares da região Centro, afirmou de forma categórica que «estamos a falar de dezenas de milhões». Para este técnico, «só a quinta em Viseu avalio-a em 13,5 milhões de euros», explicando que «é uma propriedade com 15 hectares urbanos, em zona de crescimento da cidade».

Mas há mais imóveis nesta herança: prédios urbanos e apartamentos «nas freguesias de Buarcos e São Julião», na Figueira da Foz, ou uma dúzia de apartamentos no Alto da Ajuda, em Lisboa, uma casa em Cascais e outros bens. Desolado, Mário Gonçalves conclui que «demos a face para dialogar, mas infelizmente a Santa Casa não nos deu ouvidos. Reunimos com o senhor Provedor e com o senhor Bispo, na Guarda, mas a nossa posição não foi aceite nem a vontade da testadora». Segundo um popular, a Misericórdia de Trancoso «apoderou-se» do testamento sem prestar qualquer esclarecimento. O pároco da vila, por sua vez, referiu terem sido feitas algumas diligências «sem sucesso» junto da instituição e que houve mesmo uma reunião com o Bispo da Guarda (ao qual reporta a Misericórdia) que, segundo o padre Carlos Helena, «respondeu com uma perspetiva divergente» da apresentada pelo Centro Social. Ou seja, segundo os testemunhos de quem reuniu com D. Manuel Felício, o Bispo concorda que a Misericórdia é a legítima herdeira do legado de Carmen Rio Domingues. Outro dos populares presente na assembleia realizada em Vila Franca das Naves no domingo, que pediu para não ser identificado, estima que estejam em causa «cerca de 60 milhões de euros, que a Misericórdia pode receber como um verdadeiro Euromilhões para pagar as dívidas, mas a herança é do povo», avisa, não sem antes recordar que a Santa Casa se encontra em dificuldades financeiras.

O INTERIOR contactou o Provedor da instituição, mas o padre Joaquim Duarte, depois de referir que «não quero entrar em polémicas», disse que só responderá por escrito. Até ao fecho desta edição não obtivemos, todavia, resposta às perguntas entretanto enviadas por email.

«A maior herança jamais vista»

Tudo começou a 14 de junho de 2018, quando a Santa Casa da Misericórdia de Trancoso mandou publicar um anúncio «sobre atribuição de legado» n’O INTERIOR (edição nº 964). Nesse anúncio era divulgado que Carmen Rios Domingues, natural de Vila Franca das Naves e residente em Lisboa, falecera a 17 de maio de 2016 tendo deixado um «legado em dinheiro e em conjunto aos seus afilhados e afilhadas de baptismo». Desta forma, e no cumprimento da obrigatoriedade legal de publicitação do testamento, eram informados todos os que «tenham direito a participar naquele legado».

Publicado o édito, a Misericórdia iniciou o processo de habilitação de herdeiros e afirmou-se como legítima herdeira da benemérita – a testadora, de forma expressa, deixava o grosso da herança à Comissão Municipal de Assistência ou a «entidade congénere», com «a obrigação de destinar toda a sua herança» a uma «instituição de assistência particular» a criar com o nome da família Rios Domingues.
Agostinho Martins, assinante e leitor atento de O INTERIOR, antigo comerciante de tecidos e cuja loja era, precisamente, próxima da firma “J. Germano Vicente Domingues”, ficou intrigado com o anúncio publicado neste jornal. Sempre soubera da admiração de Carmen Rios Domingues pela obra, os sonhos e projetos do padre Indaleto Neves (que foi durante muitos anos pároco de Vila Franca das Naves e promotor do desenvolvimento social, cultural e assistencialista da vila) e achou estranho não haver nenhuma referência à paróquia. Comentou o assunto com os filhos Maria João e José Joaquim Martins, ela advogada e ele juiz. Depois, levaram o assunto ao atual pároco de Vila Franca das Naves, Carlos Helena. E iniciaram a procura do testamento, pois, muito para além daquilo que a Misericórdia anunciara no édito, havia que identificar o legado da benemérita à população, e em especial «aos amigos e colaboradores da casa que ajudaram a erguer» – os trabalhadores da empresa que eram naturais das freguesias incluídas no testamento como beneficiárias: Cerejo, Moimentinha, Póvoa do Concelho, Vila Franca das Naves e Vilares. Entretanto, a Misericórdia de Trancoso fez a habilitação de herdeiros no Cartório Notarial da Covilhã e registou os bens no Cartório Notarial de Celorico da Beira.

Um galego a fugir à Guerra Civil espanhola

Natural de Lugo, na Galiza (Espanha), Germano Domingues era um exímio negociante de têxteis. Chegou a Vila Franca das Naves nos anos 30 do século passado fugindo à Guerra Civil espanhola. Estabeleceu-se próximo da estação ferroviária e, a partir daqui, com a sua mulher, Delmina Rios, iniciou um percurso de sucesso comercial. A facilidade de comunicação que o caminho-de-ferro permitia contribuiu decisivamente para o crescimento da firma “J. Germano Vicente Domingues”, dedicada ao comércio por grosso e a retalho de tecidos.
O casal galego teve uma única filha, Carmen, que viria a ser assistente social, primeiro na Figueira da Foz e depois em Lisboa, onde viria a falecer a 17 de maio de 2016 sem deixar descentes. Deixou em testamento um legado de milhões, uma herança que, como salientou o padre Carlos Helena, pretende «construir uma obra bela» na comunidade de Vila Franca das Naves «e redondezas».

Luís Baptista-Martins

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