Covid-19 Reportagem Sociedade

«Vai correr tudo bem»

Escrito por Jornal O Interior

A pandemia e a consequente declaração de estado de emergência em Portugal obrigaram a generalidade da população a ficar confinada ao domicílio ou a trabalhar a partir dele. Mas para que isso seja possível há bens que não podem faltar, sendo muitos os trabalhadores para quem o isolamento não é uma opção individual.

Portugal está em estado de emergência desde as zero horas de domingo face à emergência sanitária que se vive a nível global com a pandemia da Covid-19. A palavra de ordem para tentar conter a propagação do novo coronavírus é o distanciamento social e o reforço dos atos de higiene e desinfeção. Sair de casa está desaconselhado e só deve acontecer em caso de necessidade, para comprar bens alimentares ou medicamentos. São muito os setores que, por essa razão, mantêm o seu funcionamento normal, assumindo a missão de garantir que toda a comunidade continua a ter acesso a todos os produtos indispensáveis.

Nos hiper e supermercados mantém-se uma parte significativa de trabalhadores para quem o isolamento social não é uma opção. Daniel Tavares, funcionário do Continente Bom dia, na Guarda-gare, explica que sendo este um setor em que inevitavelmente há contacto com o público «há sempre medo» do contágio. Contudo, entre os funcionários o cenário é encarado com tranquilidade. «Nós sabemos que temos de estar abertos e não há nada a fazer», refere o guardense, que assume ter tomado maiores precauções na sua rotina diária para evitar um possível contágio. «Chego a casa tento tomar logo banho, lavo sempre bem as mãos», adianta. Quanto aos clientes com que contacta diariamente «alguns vão com máscara, outros com luvas, outros ainda tentam ter cuidado ao marcar o código do cartão multibanco… Mas continua a haver pessoas que não têm cuidado nenhum, que vão lá por um pacote de bolachas. As pessoas não sabem viver com pouco, não conseguem viver sem os luxos habituais», acrescenta o trabalhador, que lamenta a falta de contenção por parte de muitos cidadãos.

Umbelina Mateus é proprietária da “Taberna do Bacalhau Frito” e da “Padaria Reboleirense” ambos em Trancoso. Enquanto o primeiro está fechado, a padaria continua a funcionar, mantendo o fabrico (na freguesia do Reboleiro) e o atendimento ao público, embora apenas para venda de pão e bolos para levar. «É vender e largar por causa do contágio», afirma a proprietária, que refere que o espaço foi reduzido e o acesso dos clientes limitado. Apesar de admitir que houve alguns dias com mais procura de pão, Umbelina Mateus garante que isso não se traduz nas vendas, pois os locais onde habitualmente forneciam pão e bolos (escolas, restaurantes) estão fechados. Apesar disso não coloca a hipótese de parar a produção e a distribuição. «A nossa população é bastante idosa e nós sabemos que eles precisam mesmo de nós», diz a proprietária, que também faz distribuição porta a porta. «Temos as nossas responsabilidades e as pessoas estão a contar connosco. Fornecemos também lares de terceira idade, centros de dia… Nós não podemos faltar, não é?», constata.

Trabalhar com receio de ficar infetado

Mas para cumprir essa “obrigação”, o trabalho de Umbelinda Mateus, de produção e distribuição de pão e bolos, está dependente da obtenção da matéria-prima. É esta fase que cabe assegurar à Jopama. A empresa sediada no parque industrial do Canhoso, na Covilhã, distribui farinhas e produtos para panificação em «mais de uma centena de empresas» nos distritos de Castelo Branco e Guarda. José Horta, o proprietário, afirma que até ao momento tudo se tem mantido dentro da normalidade, mas admite que este «é um processo que, se continuar assim, vai inverter-se». «As fábricas vão ter dificuldade em laborar, pois cada vez estão a surgir mais pessoas infetadas, logo vão ter dificuldade em produzir e irão ter também dificuldade em satisfazer as necessidades da população», receia. Na empresa que dirige trabalham 12 pessoas, que, de acordo com José Horta, não têm o seu posto de trabalho em risco mesmo que a situação económica se agrave em Portugal. «Eu sei que tenho um problema por resolver e o meu problema, a minha determinação, é que toda aquela gente esteja comigo até ao final desta crise, porque eu não vou abandonar ninguém», assegura, reforçando que despedir «não me passa pela cabeça».

Nas farmácias, estabelecimentos que assumem maior destaque nestes tempos de pandemia, também «mudou muita coisa». Inês Janela, farmacêutica na Farmácia do Mileu, na Guarda, relata que atualmente «atendemos através do postigo, ou da porta», como forma de prevenção imposta pelo decreto de estado de emergência. O trabalho é feito de máscara e com recurso a «desinfeções constantes». 

Além disso, «estamos a trabalhar por turnos, alternando entre duas equipas que não se encontram», de forma a reduzir os riscos de contágio. «Como a maioria das pessoas, tenho medo de ficar infetada», mas também de «contagiar outras pessoas», assume a farmacêutica. Nesse sentido tem agora cuidados redobrados no que toca à sua rotina diária. «Tenho uma área específica em casa, onde coloco tudo assim que entro. Ponho a roupa, sapatos e vou imediatamente tomar banho. Desinfeto os objetos em que toco, como o telemóvel, e desloco-me apenas entre casa e o trabalho», acrescenta Inês Janela, que diz estar a evitar ao máximo as deslocações desnecessárias.

«É preciso protegermo-nos a nós e a todos à nossa volta»

Apesar de recomendado, o isolamento não é, no entanto, uma opção para quem o trabalho é socorrer os outros. Em entrevista a O INTERIOR Paulo Sequeira, comandante dos Bombeiros Voluntários da Guarda, explica que a corporação já efetuou «dois transportes suspeitos de Covid-19, nos quais o pessoal teve de recorrer aos instrumentos de proteção individual para que não houvesse qualquer problema». Apesar disso, houve posteriormente «alguma contenção» no que respeita aos contactos sociais com os bombeiros envolvidos nesse transporte, ainda que não tenha existido qualquer suspeita de contágio. «Os bombeiros são seres humanos e por isso têm o mesmo tipo de sentimentos que têm todos os outros», diz Paulo Sequeira. «Existe receio, existe medo, porque isto é realmente uma situação grave», contudo os bombeiros «acabam por estar presentes e continuar a fazer os seus piquetes da mesma forma», salienta o comandante, sublinhando que os “soldados da paz” da Guarda «têm-se entregado à sua missão com coragem e com determinação».

Entre os profissionais de saúde os cuidados são redobrados. Carla Sanches é enfermeira na Urgência Pediátrica da Unidade Local de Saúde (ULS) da Guarda. Como a generalidade da população, viu as suas rotinas alteradas face à propagação do novo coronavírus. Embora ainda não tenha lidado de forma direta com um caso positivo de Covid-19 – a Urgência Pediátrica só pode validar casos desde a passada sexta-feira –, a enfermeira confirma que a pandemia «mudou tudo na minha vida», a nível profissional e pessoal. «Sou divorciada e tive de mandar o meu filho para casa do pai» desde que as escolas fecharam. O filho está na Guarda, mas «só o vejo via Skype», acrescenta. Já na família «estamos a fazer isolamento total uns dos outros» por precaução. «Vocês não percebem o impacto que isto tem nas vidas dos profissionais de saúde», desabafa Carla Sanches, cuja maior preocupação neste momento é «o não conseguir dar assistência a todas as pessoas que precisam». Por outro lado, o que menos a preocupa é, «por estranho que pareça, que um de nós fique infetado» pois entre os profissionais de saúde «reina um espírito de que vamos todos conseguir ultrapassar isto».

Questionada sobre a possibilidade de agravamento do surto na região, a enfermeira afirma ter a «certeza» de que a situação vai piorar, mas deixa um apelo de esperança à comunidade: «Vamos ultrapassar isto todos juntos, vai correr tudo bem, vamos todos ficar bem, mas para isso é preciso protegermo-nos a nós e a todos à nossa volta. Precisamos de isolamento social e de criar imunidade a este vírus que é tão desconhecido», alerta Carla Sanches.

Sofia Craveiro

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Jornal O Interior

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