25 de Abril de 1974. O dia que mudou a vida de todos os portugueses, o dia da Revolução dos Cravos, o dia da liberdade. Quem nasceu depois desse ano não sabe o que é viver sem democracia nem liberdade. No entanto, ainda há quem se lembre e tenha vivido verdadeiros tempos de ditadura. O INTERIOR falou com três pessoas que partilham diferentes perspetivas da revolução: Manuel Gomes, antigo elemento da PIDE; Adérito Pinto, polícia militar; e Ilídio Gomes, um civil.
«Fui talvez o único funcionário da PIDE que acabou demitido politicamente»
Manuel Gomes tem 93 anos, é natural da Bendada no concelho do Sabugal, e foi membro da PIDE antes do 25 de Abril. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) foi a polícia política portuguesa responsável pela defesa do Estado, tal como o nome indica. Para isso, reprimia todas as formas de oposição ao regime através da censura, prisão e tortura. O seu líder foi o capitão Agostinho Lourenço, que também já tinha sido diretor e fundador da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), que antecedeu a PIDE.
Manuel Gomes entrou para a PIDE aos 25 anos porque já pertencia à PSP em Lisboa. «A polícia – chamemos-lhe assim – era uma polícia especial, foi chefiada arbitrariamente, ou quase, durante muitos anos pelo capitão Agostinho Lourenço. A sua finalidade era a defesa do Estado», sublinha o antigo elemento. No dia 25 de abril de 1974, Manuel Gomes garante que já não se encontrava ao serviço da PIDE, tendo sido demitido antes da revolução. «Fui talvez o único funcionário da PIDE que acabou demitido politicamente, porque não pus gravata preta no funeral de um chefe», recorda. E apesar de não ter vivido a revolução em Lisboa, Manuel Gomes explica que acompanhou tudo ao pormenor e garante que a PIDE sabia da revolução porque nesse dia «não havia nenhum inspetor nem em Lisboa, nem em lado nenhum, muitos fugiram, pois sabiam o que ia acontecer», acrescenta.
O ex-PIDE afirma também que a relação que os membros da polícia política tinham com António Salazar era quase nula: «Ainda hoje o Salazar é um mito. Quase não falava para nós e a PIDE estava permanentemente em São Bento a guardá-lo. Não falava para ninguém. Apenas falava com Agostinho Lourenço», refere. E a terminar a conversa, Manuel Gomes é polémico ao considerar que «não existe diferença nenhuma entre os comunistas e a PIDE, são iguaizinhos, até os métodos eram iguais».
«Foram momentos que não há nada nem ninguém que os pague»
Adérito Pinto tem 69 anos, é natural da Bendada, no concelho do Sabugal, e era polícia militar na altura do 25 de Abril de 1974.
«Estava a tirar a especialidade da polícia militar em fevereiro de 74, no quartel de Belém», lembra Adérito Pinto, que recorda como tudo aconteceu: «O dia começou cedo, às três da manhã o oficial de dia mandou retirar toda a gente para a parada. Depois lembro-me de se ouvir um rádio no meio da confusão e ouvimos falar da “Grândola Vila Morena”, que era uma novidade para nós, não sabíamos o que era. Ouvimos músicas populares e depois os ditos que era a revolução, a queda do fascismo, da ditadura, o dia da liberdade», narra 48 anos depois.
Adérito Pinto admite que se sentia confuso com o que estava a acontecer, mas rapidamente percebeu que o seu futuro estava prestes a mudar: «Nós eramos uns pintinhos que ali estávamos, não sabíamos de nada. Andávamos a tirar a especialidade sempre com a ideia de que íamos para o Ultramar, o que nos estava destinado era formar tropas para irmos para Angola, Moçambique ou a Guiné. A partir do 25 de Abril começamos a ver que era uma revolução e ficamos, alguns, animados e outros desanimados, porque era uma incógnita para nós. Só quando nos apercebemos da dimensão da coisa é que foi uma alegria total», afirma.
O militar garante que o que mais o marcou foi o dia em que conheceu um viajante francês «que percorria as fábricas de lanifícios para vender tecidos e, como eu falava francês, fui falar com ele com o intuito de o ajudar. Esse homem, numa situação um bocadinho caricata, disse-me: “Portugal? Portugal, um dia destes, vai ter uma revolução”. Eu estranhei porque ele estava a falar assim um bocado à vontade e eu disse-lhe em francês: “Jean tu não podes dizer isto em Portugal porque vais preso, porque aqui quem manda é o Marcelo Caetano e a PIDE”. Ao que ele respondeu: “Já não mandam durante muito tempo”. E não é que passado uns meses se dá a revolução?».
Adérito Pinto acrescenta que quando recorda «a multidão nas ruas, os cravos, a alegria do povo, digo sinceramente que ainda sinto arrepios e lágrimas de emoção, porque aquilo foi algo que ninguém estava à espera». O antigo PM, que era emigrante antes de se alistar, diz que não se arrepende de ter tomado essa decisão, pois «foram momentos que não há nada nem ninguém que os pague, a experiência que vivi, a alegria que senti e sinto foi única na vida».
«O militar já podia andar com o cabelo maior, com a barba por fazer dois ou três dias. Foi uma grande liberdade para toda a gente, mas para a juventude foi um dia memorável que ficará para sempre na história», considera Adérito Pinto, que, como milhares de portugueses, viu a sua vida mudar naquele dia.
«Com 16 anos, fui num dos tanques que se deslocaram para o Largo do Carmo»
Ilídio Gomes tem 65 anos, também natural da Bendada, e foi um dos civis que viveu a revolução “ao vivo e a cores”, em Lisboa, no dia 25 de abril de 1974.
Tinha 16 anos e estava na capital a trabalhar. «Ia pegar ao serviço no Armazém dos Lanifícios, junto ao Terreiro do Paço, mas comecei a ouvir uma multidão, carros, barulhos e vi muitas pessoas a ir em direção ao Terreiro do Paço. E eu, como era muito aventureiro, fui na onda para ver o que se passava. Posso dizer-lhe que estive lá desde das oito da manhã às oito da noite», recorda. «Estava lá aquele aparato todo por parte do Movimento das Forças Armadas para tomarem os ministérios, tanto que foi ali que começou, praticamente, o “coração” da revolução. Eu estava todo entusiasmado a ver, não sabia o que era aquilo, mas sempre gostei de paradas militares e só me apercebi mais tarde que era uma revolução. Já nem fui trabalhar», revela Ilídio Gomes.
O guardense assume que é com «algum entusiamo» que ainda hoje se recorda de todos os pormenores: «Quem via um aparato daqueles com soldados deitados no chão, com armas, oficiais, que eu na altura não sabia quais eram, a gritarem “cuidado com o navio”, que era um barco da NATO (Fragata Gago Coutinho) que estava pronta para disparar para terra, mas o que é isto? Será algum filme? Fiquei abismado com aquilo. Depois de tomarem os ministérios no Terreiro do Paço e se deslocam para o Carmo, há um dos tanques que leva muitos civis em cima e eu fui também. Assisti a tudo o que se passou no Largo do Carmo até às oito da noite, a rendição do Marcelo Caetano, que passou a dois passos de mim porque eu queria ver tudo».
O jovem identificou-se inclusive numa das fotografias mais famosas da revolução, do fotojornalista Alfredo Cunha (ver foto abaixo). «Para o quartel da PIDE já não fui porque às oito da noite o meu pai veio dar comigo no meio daquela multidão e perguntou o que estava ali a fazer, se tinha almoçado. E eu respondi “Qual almoço, qual jantar”, não me deu fome nenhuma, eu queria era estar em cima do acontecimento, todo aquele movimento foi uma adrenalina que era uma coisa doida, só queria era ver o que ia acontecer a seguir», conta Ilídio Gomes.
Embalado por todo este clima revolucionário, em 1978 foi para a tropa e «ainda apanhei lá o Salgueiro Maia. Só estive 18 meses, fiz a recruta em Tancos e fui para a Pontinha», recorda, assumindo que esses foram dos «melhores tempos» da sua vida.
Catarina Reino