Durante o confinamento, Carolina Vaz sentiu na pele a dificuldade em obter bens essenciais pois muitas lojas da Guarda estavam fechadas. «Estava na altura de preparar o Verão para os meus filhos e eu não tinha uma loja aberta para lhes comprar roupa, por exemplo», recorda. Perante a falta de oferta e a redução de rendimentos que a pandemia provocou em muitas famílias, pensou que seria benéfico criar uma plataforma onde pessoas pudessem dar a outros aquilo que já não precisam.
A intenção era juntar o útil ao agradável e valorizar objetos que possam ser reaproveitados, ao mesmo tempo que se dá resposta às necessidades da população. «A ideia inicial era criar uma caixa solidária aqui na Estação», mas esta solução mostrou não ser a forma mais prática de chegar a todos. Assim, mantendo o conceito da partilha, nasceu o grupo de Facebook “Dou-te se vieres buscar – Guarda”. O nome foi “roubado” a outros grupos semelhantes que já existiam noutras cidades do país, sendo as regras definidas de forma autónoma pela fundadora.
Lançado a 25 de abril de 2020, o grupo é já uma comunidade de milhares de pessoas, que ultrapassou as fronteiras da cidade: Covilhã, Lisboa, Porto e até Brasil, são alguns dos locais onde a página já conquistou membros.«Para ter uma ideia: em três dias tinha três mil membros, numa semana já tínhamos cinco mil… Hoje são mais de 8.600», contabiliza a jovem natural do Brasil, que está radicada na Guarda desde os dez anos de idade.
A ideia, diz Carolina Vaz, não é apenas ajudar famílias necessitadas, mas sobretudo reaproveitar itens que possam estar inutilizados. «Se me podem oferecer umas camisolas para o meu filho mais velho porque é que não vou aproveitar e rentabilizar o meu dinheiro, por exemplo, para uma conta que seja mais urgente pagar?», questiona. O objetivo principal é criar um meio onde quem precisa pode encontrar quem ofereça, sendo, acima de tudo, uma forma de estabelecer novos contactos.
«Há muita pobreza» na Guarda
«A ideia original do grupo não seria eu ser intermediária de forma nenhuma», mas acabou por acontecer. Muitas famílias, não querendo expor-se publicamente para fazer pedidos, recorrem a Carolina Vaz, que acaba por ser o veículo de muitas doações.
«Normalmente entram em contacto comigo, eu vou buscar as coisas e guardo até alguém precisar. Se as coisas estão há muito tempo comigo começo a publicar e combino com quem necessita para entregar», acrescenta. Esta ação exige muito tempo e recursos, mas apesar disso não abre mão da gestão da página, que continua a fazer de forma autónoma. «Acho que as pessoas não têm noção… Mesmo a nível de gastos. Estou desempregada e eu gasto balúrdios com o meu carro a ir buscar e a levar [coisas], mas cada pessoa que ajudo sei que fiz a diferença naquela casa ou naquela família», afirma.
O maior desafio, contudo, não é fazer face às tarefas que se acumulam, mas antes responder às diferentes exigências que vão surgindo: pessoas indignadas com outras porque não foram buscar os objetos no dia combinado, outras que “ameaçam” deitar roupa para o contentor se Carolina não as for buscar. «Também me colocam nessa situação, mas cada um também só faz aquilo que pode e que consegue», lamenta a dinamizadora do projeto, sublinhando que se vê obrigada a fazer «muitas repreensões no grupo».
Outro dos problemas é com o estado dos objetos doados, que muitas vezes estão sujos ou danificados, o que impossibilita que alguém os utilize. «Também há coisas que não tenho coragem de dar», lamenta. Para já, Carolina Vaz não coloca a hipótese de partilhar a responsabilidade, mas admite não saber o que o futuro reserva, e se algum dia se verá obrigada a isso. «Não ganho dinheiro nenhum com isto, aliás só gasto. A única coisa que ganho é a paz de espírito e saber que ajudo as pessoas, mais nada. E às vezes não têm noção de tudo o que está por detrás», refere a jovem.
Sete meses após o confinamento o grupo continua a crescer e a servir muitas famílias da região. «Todos os dias tenho vários pedidos por aceitar», afirma Carolina Vaz, que dedica várias horas a separar e organizar os itens doados, em especial roupa de criança. «Saber que uma criança não tem conforto ou não tem um agasalho para vestir… Não o consigo conceber, por isso é que me estou a focar nessa parte», justifica. Assim, todos os dias separa e arruma roupas de criança, organizando em pequenos enxovais. «Gosto sempre de ter um stock pequeno, principalmente de roupa de recém-nascido para menino e menina, porque vem uma situação urgente de pessoas que precisam e tenho no imediato para dar, não tenho de andar a pedir», explica. Mas será que há assim tantos pedidos de ajuda na Guarda?, é a pergunta que se impõe. Carolina não deixa margem para dúvidas e responde de forma clara: «Há muita pobreza, e muita pobreza escondida». «Vivemos numa cidade onde ainda se vive muito das aparências», declara. Não parece real, «mas é verdade», e por isso insiste em continuar.