P – Sempre que se fala de Eduardo Lourenço há uma referência curiosa, que é o facto de ter nascido numa “pequena aldeia”. Como se sente relativamente a isso?
R – Não sou o único, penso que, pelo menos, um terço dos portugueses terá nascido numa aldeia parecida a São Pedro do Rio Seco. É verdade que agora as aldeias do meu tempo foram promovidas a vilas. A minha não, talvez um dia o seja. Enfim, é a aldeia que me calhou.
P – Já respondeu seguramente a esta questão muitas vezes, mas hoje [sábado] que regressamos à pequena aldeia fale-nos da S. Pedro do pequeno Eduardo?
R – Todos temos tendência a mitificar a infância e com uma certa razão porque é o momento em que somos, mesmo numa aldeia pobre como era São Pedro do Rio Seco, sobre protegidos pela afeição dos pais e de toda a gente. O que mais me ficou dessa aldeia é que era uma verdadeira comunidade – não tenho ilusões do que possa estar por detrás dessa aparente comunidade –, mas era uma participação em valores comuns e enraizados no tempo há séculos. Era uma crença mais ou menos partilhada por toda a gente, embora tenha nascido no tempo da República – nasci em 1923, creio que no ano em que morreu Guerra Junqueiro, em que se vivia numa atmosfera completamente diferente. Nasci num país que já não existe.
P – E o que representa a Guarda para o Eduardo, a criança que viveu na cidade antes de ir para o Colégio Militar, aos 11 anos?
R – O meu pai, militar, tinha sido colocado na Guarda quando passou de sargento a aspirante e eu fiz aqui a 3ª classe. Depois foi fui fazer a 4ª classe em São Pedro e o exame em Almeida. Para mim, a Guarda foi a cidade. A diferença era tão grande daquela pequena aldeia, que não tinha nada. A maior surpresa era chegar a um sítio, carregar num botão e ter luz, gesto que em São Pedro do Rio Seco só seria possível na década de 70 – e a água ainda mais tarde, aquando da Presidência Aberta de Mário Soares.
P – E hoje, como vê esta região?
R – Para quem nasceu naquele tempo, naquela aldeia, o meu país parece rico. As pessoas sempre notaram que havia uma grande diferença entre Espanha e Portugal, mesmo a partir do século XVIII, parecia que Espanha era mais pobre do que nós, o que não era verdade. Talvez porque, quando atravessamos o país vizinho, somos confrontados com uma espécie de deserto – mas rico em termos agrícolas – e de repente entra-se aqui numa coisa mais ajardinada, apesar da nossa região ser uma terra de granito. Agora, quando se desembarca em Lisboa, os estrangeiros não percebem nada do discurso da crise portuguesa. Não sabem que Lisboa é maravilhosa e penso que nenhum país terá este parque automóvel, talvez só o Mónaco ou a Florida, pois há por lá tantos carros e de tão boas marcas. Ninguém sabe onde está esta famosa crise, temos a ideia que ela caiu do céu – e de algum modo é verdade, porque ela é um pouco induzida pela crise que está no sistema e que nos arrasta.
P – Nessa reflexão sobre Portugal, acha que Portugal tem um destino ou é um destino?
R – Já é um destino com tempo para saber que foi um destino com expressões diversas ao longo do tempo. Temos uma História que é, na História europeia, uma das menos dramáticas. Tivemos um contencioso com Espanha e, hoje, eles sentem-se aqui em casa – sempre tiveram tendência a sentir-se (risos) – e nós do outro lado, a visitar uma casa rica. Penso que o facto de termos tantos séculos de História, de termos tido o sentimento que íamos perder a identidade política – e que se perdeu durante algum tempo, isto é uma espécie de garantia de que o povo português foi capaz desde sempre de encontrar soluções, mesmo nas situações mais adversas. O problema agora é que somos confrontados com uma coisa nova. Portugal foi o primeiro país que saiu da Europa, pelo que somos europeus muito especiais porque numa certa altura os dirigentes do país pensaram que devíamos ir para outro sítio, fazer vida. Não era para descobertas, como se fez no século XVIII, mas para comerciar e encontrar sítios do comércio. O Islão era o obstáculo à nossa frente e contra o qual Portugal se definiu, como uma parte de Espanha. Portanto, fomos à Índia, mas levámos cem anos a chegar lá. Os espanhóis tiveram sorte com o genovês Colombo, que em três meses chegou a um continente que ninguém sabia que existia. Foi a jogada de dados mais extraordinária da História, pois saiu-lhe a sorte grande. A nós também nos saiu relativamente ao encontrarmos o Brasil, hoje o espaço por excelência da nossa língua. Agora, uma vez que fomos obrigados a retirar de África, hoje não temos saídas históricas desse género, de ir para outros sítios. Acabou-se. É por isso que essas fantasmagorias de a gente mandar passear os europeus e a sra. Merkel, tudo isso são coisas quase infantis, mas de reflexos simpáticos, de não quererem os sujeitos a mandarem na nossa casa e a gente está dependente deles. O problema é que a Europa vive numa comunidade não no sentido forte do termo, mas é qualquer coisa que quer ser isso e estamos ligados todos uns com os outros.
P – Então não se revê na afirmação de que o futuro de Portugal passa pelos PALOP?
R – É um reflexo normal, pois o laço que se criou com os países africanos é imenso. São Pedro do Rio Seco é exemplo disso, uma vez que havia vários “São Pedros”, sobretudo em Moçambique. Havia muito mais gente nossa por lá do que na nossa aldeia e lá ficaram naquela terra que amaram. As colonizações nunca falham inteiramente – a não ser as mais horrorosas –, sempre ficam coisas, laços. No nosso caso são imensos, não há dúvida. Hoje sentimos que os nossos empresários e banqueiros querem pôr um pé nesses territórios imensos, mas os PALOP não são, para já, uma saída para a crise que atravessamos.
P – Portugal vive uma crise sem precedentes. De quem é a culpa, dos políticos ou dos portugueses?
R – Acho que é de toda a gente na nossa História. Numa famosa conferência da Geração de 70 Antero de Quental disse que “o nosso drama era a nossa História”, mas a nossa história somos nós. Penso que não temos outra saída que tentar estar à altura das exigências que esta construção europeia vai pondo a cada país, não há mais outra saída.
P – Então qual é o futuro deste país que está na mão dos credores nos próximos anos?
R – Temos sempre que o nosso caso é único, mas a verdade é que as diversas nações europeias têm todas um problema de se readaptar a esse mundo, cujo centro já não é a Europa, como foi durante séculos, onde todos os problemas se resolviam com os vizinhos e os vizinhos dos vizinhos. Só no século XVIII é que houve uma guerra europeia propriamente, a da sucessão de Espanha. Nós estamos nessa Europa e é nela que temos que encontrar a solução para a crise. De resto, a Europa está cá. Durante muito tempo, habituámo-nos a pensar nós e a Europa, isto é, uma maneira negativa – nós somos os últimos – e outra positiva – somos à parte, temos uma história diferente, de expressão mundial e isso devia servir, mas todo esse passado glorioso já pouco serve porque não estamos no tempo das esquadras do Gama ou do Albuquerque para ir buscar especiarias a outros sítios. O mundo mudou de forma fantástica – não há conto ou romance que seja tão fantástico como a própria História – e temos de encontrar a nossa saída. De resto, penso que, com a guerra do Ultramar e a seguir ao 25 de abril, Portugal sofreu uma evolução enorme. Há um outro Portugal, justamente muito mais europeizado no sentido em que pensávamos que éramos pouco europeus comparados com a França e Inglaterra. Nós não temos outro modelo – se tivéssemos escolhido ser aliados privilegiados dos Estados Unidos, como se falou há uns anos, uma das versões era que podíamos ser o Porto Rico da Europa. Todas as hipóteses me são agradáveis menos essa (risos). O nosso destino é realmente na Europa.
P – Nessa visão de integração na Europa, acha que há uma distinção entre as elites e o povo, uma forma de pensar diferente?
R – Sempre houve. Mas aqui é mais nítida por uma razão cultural. Há 50 anos a percentagem de gente que não tinha ainda acedido ao ensino secundário era muito elevada, portanto não tinham informação do que se passava noutros sítios e inclusive do que se passava no seu próprio país. Nessa altura, os Pirenéus começavam aqui em São Pedro do Rio Seco ou em Vilar Formoso. Mas nos últimos 25 anos há mais informação, que toda a gente partilha e que lhe é fornecida por todos os meios, até oralmente. Portanto, já não há esta separação, nem se nota como se notava no meu tempo. Naquela altura havia realmente o povo, depois uma classe que estava a sair do povo e que queria não ser confundida com o povo. Finalmente, havia uma classe inacessível, que mandava neste país ou que estava ao serviço dos que mandavam, e que vivia em Lisboa ou no Porto. O resto era paisagem, como dizia o Eça. Curiosamente, essa imagem continua a ter uma certa evidência porque, de facto, Portugal deslocou-se para o litoral. Temos Lisboa e depois as nossas províncias, que o são no sentido quase pejorativo usado pelos lisboetas. Mas esse fenómeno não se dá noutros países. Em Itália, por exemplo, as províncias estão umas ao lado das outras, nem sequer Roma, que foi a capital do mundo, tem esse papel. A cidade mais importante chama-se Milão. Em Portugal, temos a faixa que vai do Porto a Lisboa e depois a zona raiana, a que se sente ainda mais província. Mas nem tudo é mau nisso, acho eu, não sei… Mas sou muito idealista e pouco terra-a-terra, porque uma pessoa não pode estar em sítios que detesta. Hoje, São Pedro de Rio Seco é uma aldeia de gente da minha idade – devo ser o mais velho, a fazer concorrência a Manuel de Oliveira (risos) –, quase não há crianças e está muito desertificada. Mas, ao mesmo tempo, encontramos gente com vontade de não querer perder a sua energia e estar morta. Graças ao doutor Luís Queirós, há neste momento uma grande vontade em reativar um pouco toda aquela zona, que perdeu também muito do dinamismo que havia ali e que tinha a ver com a fronteira quando esta era ativa. Atualmente, temos tendência de querer pensar que um certo turismo cultural e patrimonial pode ser a salvação da região, bom, a gente faz com o que pode, mas não chega.
P – O seu iberismo tem a ver com o facto de ter nascido numa aldeia raiana?
R – Meu iberismo com muitas aspas (risos)… O iberismo é uma coisa que se apresentou à Geração de 70 aquando da primeira versão da República na Península, em 68, aqui ao lado. A jovem geração, muito extremista, pensava que o modelo federalista – influência das ideias de Proudhon – tinha que triunfar também na Península Ibérica. Essa hipótese não me repugna se tivéssemos todos o mesmo estatuto e não houvesse uma hegemonia do país mais forte, que é Espanha. Do meu ponto de vista, este iberismo é só isto: pertencemos à mesma matriz cultural, ficámos depois fiéis a Roma aquando da primeira grande crise política que abre a Modernidade (a Reforma). É só isso. Uma hipótese de federalismo europeu, que agora anda aí outra vez no ar. Uma Europa só pode ser construída sobre dois modelos, pois não conhecemos outros. O dos Estados Unidos não é para a Europa porque, sem serem uma nação como a entendemos, são um continente que fala oficialmente a mesma língua e, portanto, é um ator na História – e de que maneira, é o ator… por enquanto. O outro modelo é o confederativo, uma espécie de Suíça grande, mas só falar disso fica tudo gelado porque a Suíça tem esse estatuto fantástico em que há uma espécie de acordo tácito de que é o banco da Europa em geral, da Suíça em particular e ocasionalmente de uma parte do mundo. Portanto, tudo está de acordo para que aquilo funcione perfeitamente bem, além do mais são ricos. Que esta Europa surja, desde a Rússia até Portugal, não é para agora.
P – A criação do Centro de Estudos Ibéricos é resultado da sua apologia da Ibéria. O CEI está a cumprir a missão que tinha idealizado?
R – A ideia era essa e surgiu do seguinte. Quando estive lá fora como leitor de Português, estava numa secção que se designava Estudos Espanhóis e Estudos Portugueses, claro que estes sempre secundarizados em relação aos primeiros. A certa altura tive de me encarregar da História das Ideias em Espanha e conheci um pouco melhor a cultura do país vizinho. Dei-me conta que a nossa própria compreensão deixava muito a desejar se não tivéssemos em conta a totalidade da história ibérica. Tivemos os mesmos problemas, as mesmas Inquisições ou os liberalismos que nos chegaram tardiamente. A nossa História é uma História paralela, umas vezes Portugal mais avançado em relação aos paradigmas europeus do que a Espanha, outras a Espanha mais do que nós. E isso sente-se.
P – Não acha que com os pós-modernismos e os desconstrucionismos que vieram na filosofia do século XX não levaram hoje a uma autoflagelação intelectual da Europa?
R – A modernidade já foi autoflagelante – e essa é uma das coisas extraordinárias que fez a Europa, ter esta herança, que nos vem da Grécia, de repensar as coisas, de criticar e autocriticar. Este tipo de cultura que chamamos Filosofia é uma contínua crítica do estado do mundo e do próximo. Com a Reforma e no que se segue começou uma espécie de crítica da própria História humana e ninguém levou isso mais longe do que a Europa, que é um continente crítico, autocrítico, portanto, um pouco masoquista se quisermos. Simplesmente, a Europa não é uma nação e não é também uma unidade, sobretudo cultural, como já foi. O que foi triunfando foi uma cultura e uma civilização virtualmente laica, o que é caso único no mundo.
P – Nessa sequência, acha que é por isso que hoje, na literatura portuguesa, Eça de Queiroz e Camilo Castelo Branco não estão lado a lado? Por exemplo, o Camilo saiu do programa do Secundário como leitura obrigatória. Não é um bocado a vitória dessa visão laica, secular e quase elitista sobre outra mais romântica?
R – Saiu!? Isso é o mesmo que tirar Portugal… Esse tipo de reações teria sido mais normal em relação a Camões por causa das guerras em África – é verdade que elas foram todas bandeirinhas dos “Lusíadas”. Mas não se pode acabar com Camões sem acabar com Portugal, com o Camilo é a mesma coisa, pois é o Portugal do século XIX. A par de Júlio Dinis, não há outra leitura. Além do mais, eles são a literatura portuguesa, mas uma literatura muito acessível. No meu tempo, dava-se Júlio Dinis e umas coisas de Camilo. O Eça de Queirós dava-se pouco, cheirava a enxofre… Era para a adolescência se iniciar em coisas que já saberia mas não tinha bem a certeza. Que não se deem “Os Maias” nos primeiros anos, a gente ainda percebe, o que já não se entende é que se saia da escola sem ter lido Eça de Queirós. Mas a responsabilidade é do Ministério da Educação.
P – Voltando à questão do Iberismo, quando diz que nos identificamos pela diferença, precisamente a obra fundadora da nossa identidade são “Os Lusíadas” e em Espanha é uma mais universal, o “Dom Quixote”. Além disso, esta tem episódios mais humorísticos e “Os Lusíadas” não. Acha que isso faz com que Portugal seja um país com menos sentido de humor?
R – O paradoxo é muito interessante. A tónica da cultura espanhola é épica, como “O Cid”, em volta de toda essa luta que a Espanha, ainda antes de ser Espanha, travou contra a invasão árabe, tomando todos esses heróis. De resto, há alguns episódios que António José Saraiva sinalizou na gesta de Afonso Henriques e que pertencem um pouco ao mesmo sector. Mas, desde o princípio, o que tem caracterizado a nossa sensibilidade poética é propriamente o lirismo. Portanto, temos de um lado esta tonalidade épica e realista, que é típica da cultura espanhola, e por cá o lado lírico e mais sentimental. Acontece que, curiosamente, é o país lírico que cria uma epopeia e o país mais épico cria uma farsa sublime, uma história fantástica e a primeira grande banda desenhada da cultura ocidental. Talvez os espanhóis tenham um pouco mais humor – mas um pouco humor negro – do que nós. Realmente não há um livro tão cómico como o “Dom Quixote”, mas não é só na Espanha é na Europa toda. Só que não podemos esquecer que a Espanha naquela altura tinha uma experiência da Europa muito vasta. Nesse tempo, os espanhóis dominam a Holanda, os Países Baixos, a Itália. É claro que Cervantes não podia existir se o Ariosto não tivesse existido antes. Houve, portanto, todo um humanismo do qual o nosso Camões também depende, mas por outra via. Ele percebeu que aquilo que os portugueses fizeram naquela época só podia ter uma tradução e ser visto como qualquer coisa de sobre-humano. Portugal era o “Super-Homem” da época porque não se esperava que um país com pouco mais de um milhão de habitantes andasse por esse mundo a fazer coisas, boas e más, que nunca mais voltará a fazer. Isto deixou uma imagem de marca e não temos outra.
P – Disse que citar um autor nacional contemporâneo, amigo ou inimigo, porque nele se aprendeu ou nos revimos com entusiasmo, é entre nós uma raridade. Considerou mesmo que a referência nobre entre nós é a estrangeira, por mais banal que ela seja. Acha que temos tendência para depreciar o português?
R – É aquilo que o meu amigo José Gil detetou. Portugal ainda é muito aldeia e toda a gente se conhece – tu não és mais do que eu. Há uma espécie de democraticidade orgânica por defeito, são todos muito democráticos, só não querem que o outro seja mais do que eu. A classe intelectual não é muito generosa nesse capítulo, é sempre preferível – e dá mais estatuto – citar Heidegger ou Wittgenstein do que o Fernando Namora, coitado, que desaparece na voragem. É uma espécie de concorrência que não se põe noutros países, que são tão grandes que os intelectuais não se conhecem uns aos outros.
P – Usando a dicotomia aristotélica, Portugal é uma comédia ou uma tragédia?
R – No fundo, é uma tragédia e é o que ela tem de bom. Mas para que se possa levar melhor, com muita comédia e alguma farsa.
P – Ensaísta, filósofo, pensador, como se define Eduardo Lourenço?
R – Nada, definem-me. Recuso definir-me, até porque não posso, seria pretensioso da minha parte. Agora, por mais que queira sair desse casulo não consigo, é ensaísta e pronto. Bem queria passar para outra categoria… (risos).
P – Disse em tempos que não contava ter uma estátua, hoje vai tê-la. Como encara esta homenagem?
R – Estátua não é, é uma silhueta. A verdade é que não me sinto bem, pois não acho que haja alguma espécie de justificação para esta homenagem.
P – Mas emociona-se sempre que regressa a São Pedro do Rio Seco?
R – Sim, até porque essa minha aldeia é hoje uma ideia morta a vários títulos. Morta porque são mortos praticamente todos os meus familiares e também porque a aldeia não tem aquela vida. Perdeu a sua energia vital, é só gente velha. É uma aldeia que está a morrer mesmo, no sentido sociológico do termo. Há esta tentativa do dr. Queirós de dar-lhe alguma animação, as pessoas vivem melhor materialmente, há subsídios e condições para se estar em São Pedro do Rio Seco, mas…
P – … Nas suas palavras há, além de um grande conhecimento da vivência de São Pedro, uma certa melancolia e tristeza pelo definhar das suas raízes.
R – As minhas perspetivas não são realmente eufóricas (risos), mas são naturais, aceito-as e às vezes até as desejo. É o destino de todos. O laço afetivo impõe-me que desejemos reencontrar os nossos próprios mortos e não estar aqui a sobreviver só por sobreviver. Esse é o nosso destino até ver, até que os homens se tornem imortais. Coisa que não desejo porque ainda seriam piores do que são.
P – Por que nunca regressou definitivamente a Portugal?
R – Nunca tive planos de nada, nem de carreira, nem de vida. Deixei-me mais viver e nunca me impus uma regra qualquer para chegar a isto ou aquilo. A certa altura fui para o estrangeiro e nessa primeira saída, em 1949, conheci a minha futura mulher, francesa. Depois, fui leitor lá para fora, talvez já um pouco pelo conhecimento que tinha dela, e fiquei em França. Podia ter ficado noutro sítio qualquer, e por lá andei em várias cidades. Mas estava em França como os portugueses ficam em qualquer sítio, isto é, sem nunca sair daquele de onde se saí. Também sou muito distraído em relação ao exterior, mas a companhia e o sítio é isso onde não estou, onde não estive grande parte da minha vida. E quando digo a minha aldeia é também este país, porque o meu objeto de interesse sobre ele, a sua história, literatura e mitos aumentou muito pelo facto de estar longe dessa realidade. Foi uma espécie de compensação por ter perdido um pouco este meu país real e a minha realidade enquanto português em função de outra de coisa, de nada.
P – Há um Portugal que já não existe, mas guardado curiosamente pelos nossos emigrantes.
R – Quando começou a grande emigração para França havia esta preocupação de não os perder. Essa era a preocupação do Estado Novo. Primeiro ia o padre, para garantir esta maneira de ser portuguesa, e, depois com os meios de comunicação modernos, estar junto deles com os famosos programas para a diáspora. Mas eles transmitiam o Portugal mais folclórico e folclorizante que se podia imaginar – eu não podia gramar aquilo. Os emigrantes a quererem e a poderem ser outra coisa e o país agarrado a eles como uma lapa. Aqui evoluía-se e lá eles eram uns portugueses ainda mais arcaicos do que os que tinham deixado. Eu sofri isso, mas eles gostavam do que viam e ouviam. Este levar o país atrás é compreensível, mas é um pouco melancólico. Prefiro o tipo de gente que, sem deixar o país, também está no outro, senão uma pessoa fica dividida ainda mais do que se fica quando se emigra, se expatria.
P – Disse uma vez numa entrevista que a sua obra é uma errância, que não é uma obra. Acha que isso é a mesma coisa do português que anda pelo mundo, errando?
R – Não é a mesma coisa porque não fui obrigado a sair daqui, esses é que são os verdadeiros emigrantes. As pessoas deixaram Portugal por razões políticas ou económicas e, basicamente, foram para um sítio onde ganham melhor a vida. Eu não, saí porque quis… Ou porque não quis. Há uma história famosa na Bíblia, a de Saul, que sai de casa dos pais para procurar uns animais e encontrou um reino. No fundo, saí por causa de uma espécie de curiosidade intelectual e encontrei um reino quando afinal o verdadeiro reino era este onde estou.
P – Há uma frase sua que tem algo muito interessante nestes tempos conturbados, que diz «Em princípio, todo o português que sabe ler e escrever se acha apto para tudo e o que é mais espantoso é que ninguém se espante com isso»?
R – (risos) Durante séculos as classes mais pobres nasciam em estado de necessidade de luta, as pessoas tinham que sobreviver tivessem ou não as condições para isso. E se não as tinham, inventavam-nas, é o lado do português desenrascado. Sem formação muito exigente, os portugueses ficavam adstritos à terra, que foi o destino da maioria dos rapazes que andaram comigo na escola e que eram tão bons ou melhores alunos do que eu. Na verdade, quem mandou neste país durante séculos foi uma cidadezinha chamada Coimbra e é essa gente formada na “cidade dos doutores” que corresponde muito a essa descrição. Eles tinham que estar aptos para tudo porque tinham o mínimo de saber e estavam responsabilizados pela governança do país.
Luís Baptista-Martins e Nuno Amaral Jerónimo