Sociedade

E a Revolução voltou a passar pela Rádio Altitude

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Escrito por Efigénia Marques

Sarau cultural no TMG assinalou o arranque das comemorações dos 75 anos da rádio local mais antiga do país

A Rádio Altitude levou a Revolução de Abril ao Teatro Municipal da Guarda (TMG) no sábado numa noite de memórias, música, dança e poesia. Num grande auditório praticamente esgotado, o sarau cultural marcou o arranque das comemorações dos 75 anos da emissora local mais antiga do país.
As canções “O Teu Poema” e “Depois do Adeus”, interpretadas pela jovem Maria Lucas, acompanhada ao piano por Daniel Lucas, fizeram a plateia recuar no tempo, antes da atuação da Escola de Ballet do Centro Cultural da Guarda, com a coreografia de Teresa Pais intitulada “O Antes e Depois da Liberdade” e concluída com cravos colocados na boca de cena. E foi com um TMG imerso no ambiente do 25 de Abril que aconteceu o primeiro momento alto da noite proporcionado pela tertúlia moderada por Albino Bárbara, onde Abílio Curto, António José Dias de Almeida e José Manuel Mota da Romana partilharam recordações e histórias de tempos sombrios e também de esperança.
O antigo presidente da Câmara da Guarda e ex-colaborador da rádio recordou quando arriscava passar discos de Zeca Afonso, Manuel Freire, Francisco Fanhais ou Adriano Correia de Oliveira no seu programa diário de final de tarde, intitulado “Cocktail Musical”. Até ao dia em que a emissão foi interrompida: «Tínhamos sempre alguém que ouvia ou era informado por alguém do Altitude que fulano tal estava a passar música deste ou daquele cantor. Normalmente, eu fechava o programa com “O Pescador da Barca Bela”, do Adriano, e há um dia em que o administrador da rádio, que era também diretor do Sanatório Sousa Martins, entrou no estúdio, pôs a mão em cima do gira-discos e fechou imediatamente a emissão», partilhou Abílio Curto, segundo o qual a popularidade e influência do Altitude era de tal ordem que não raras vezes os ouvintes mandavam “reparar” os aparelhos na empresa Amílcar & Grilo quando a emissão ia abaixo.
Por sua vez, José Manuel Mota da Romana, professor universitário aposentado e antigo colaborador do Altitude, confidenciou que nesses tempos conturbados a emissora guardense era um lugar de «certa apreensão» porque a estação era «um microcosmos do que se passava no país» no Estado Novo. Não foi por acaso que a rádio foi logo ocupada e vigiada pelo Movimento das Forças Armadas, como recordou o alferes José António Pardalejo numa entrevista a Francisco Carvalho, novamente transmitida no sábado. Os receios permaneciam e foram de tal ordem que levaram José Manuel Mota da Romana a dormir nas instalações da rádio para evitar surpresas contrarrevolucionárias. «Esta inquietação, dúvida, perplexidade e ansiedade, do Altitude ser um lugar pacífico e não se tornar um lugar de transmissão de notícias falsas ou de contrarrevolução prolongou-se durante mais de um ano. De tal forma que, quando surgiu o 28 de setembro, dormi no Rádio Altitude, não me envergonho de o dizer, porque havia suspeitas de alguns elementos estarem de alma e coração com o antigo regime», afirmou.
Mota da Romana admitiu que foi necessário recorrer à censura, mas «não de maior», por causa de comunicados «de toda a ordem, até a insultarem o capitão Valente». «Só não divulgávamos em caso de verdadeiros atentados e atropelos à jovem democracia, mas nada que se parecesse com a censura que se usava no Altitude antes do 25 de Abril», garantiu. Já António José Dias de Almeida, professor aposentado e antigo Provedor do Ouvinte da rádio, estava na tropa em Moçambique quando se deu o 25 de abril. Só muito mais tarde começou a colaborar com a rádio da cidade mais alta, mas nunca esqueceu o programa de João Gomes, ilustre oposicionista da cidade: «Às vezes era extenso e podia ser um pouco cansativo, mas era um programa de autêntica pedagogia que tentava influenciar um pensamento mais democrático em pessoas que, muitas vezes, dele andariam desviados».
O sarau cultural “Abril no Altitude – a Revolução passou pela Rádio” assinalou o início das comemorações dos 75 anos da emissora local que emite ininterruptamente desde 1948 a partir da Guarda. O objetivo é celebrar a efeméride «com a prata da casa, as pessoas que trabalharam, trabalham e colaboram connosco, e os amigos que querem ajudar. Eles e vocês [dirigindo-se à assistência] são a alma e a vida da Rádio Altitude», sublinhou Luís Baptista-Martins, adiantando que outros momentos comemorativos estão a ser preparados. O diretor da rádio acrescentou que o evento foi também uma homenagem aos fundadores e antigos trabalhadores do Altitude e ao legado que deixaram.
Presente da iniciativa, o presidente da Câmara, Sérgio Costa, destacou o papel da Rádio Altitude na sociedade e afirmou que é «património Guarda»: «Há muitos anos que o Altitude realiza serviço público procurando informar os guardenses sobre todas as vertentes da vida do nosso concelho, região e do país. É património da Guarda, foi escola de muitos jornalistas. Os seus registos sonoros formam um arquivo de valor inestimável que relata o sentir e o viver de toda uma região», reconheceu. Para o autarca, «os cidadãos têm que ter plataformas em que possam expressar as suas ideias, crenças e valores. Estimemos, pois, a Rádio Altitude e, em vez de venham mais cinco, venham mais 75 anos e não deixemos que este património da Guarda se esvaneça. Parabéns Rádio Altitude!».
“Abril no Altitude – a Revolução passou pela Rádio” prosseguiu com a declamação de poemas de Manuel Alegre, Ary dos Santos e António Gedeão pelo estreante grupo de intervenção cultural “Reflexo Imperfeito”, formado por Albino Bárbara, Alexandre Gonçalves, Daniel Lucas, Luís Baptista-Martins e Pedro Correia. Também não faltou “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, cantando em uníssono pelos intervenientes numa noite de memória e para recordar.

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Efigénia Marques

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