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Salvar as gravuras do Côa foi «uma decisão fácil»

António Guterres, atual secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), regressou ao local onde salvou as gravuras do “afogamento”. 25 anos após a decisão de suspender as obras na barragem do Côa, o antigo primeiro-ministro diz que era «evidente» a importância de preservar o património ali encontrado.

Vinte e cinco anos depois de, enquanto primeiro-ministro, ter decidido parar a construção da barragem do Côa, António Guterres foi homenageado, na passada quinta-feira, no Museu do Côa, em Vila Nova de Foz Côa com a atribuição do seu nome ao grande auditório do equipamento, materializada numa placa de xisto com a sua imagem.

A cerimónia, realizada no âmbito do 10º aniversário do museu, reuniu governantes, representantes da Assembleia da República, instituições de ensino superior, investigadores, autarcas e outras figuras associadas aos projetos da arte do Côa.

O ex-governante foi sucessivamente elogiado pela decisão que permitiu criar o Parque 

Arqueológico do Vale do Côa e construir o museu, numa cerimónia que envolveu muitos discursos de reconhecimento: Bruno Navarro, presidente da Fundação Côa Parque, expressou «gratidão» ao atual secretário-geral da ONU e elogiou «a lição que deu ao mundo». Gustavo Duarte, edil de Vila Nova de Foz Côa, afirmou que sem as gravuras o futuro do concelho seria «risonho», mas «não era a mesma coisa». Já Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, sublinhou que a decisão tomada «há um quarto de século» mostra que «sermos capazes de ser os guardiões de memórias não é incompatível com o progresso». Também Manuel Heitor, ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, saudou a «ousadia» de não fazer a barragem e deu destaque ao aniversário da criação do seu ministério (em 1995), efeméride que também foi ali assinalada.

António Guterres assumiu-se «emocionado» pelos sucessivos elogios e pela homenagem, mas logo afirmou que «se há alguma coisa que não merece ser homenageada» foi a decisão que tomou. «Foi uma decisão fácil, ao contrário do que muitos pensam. Não foi uma decisão difícil, nem foi uma decisão corajosa», admitiu o antigo primeiro-ministro socialista. A sua ação, em 1995, foi decisiva para a preservação das gravuras que hoje são Património Mundial, e permitiu pôr fim a uma polémica pública que dividia a sociedade. «Recordo-me de uma sondagem de opinião, feita na altura, em que 65 por cento dos portugueses achavam que se devia continuar com a barragem. Naturalmente estavam mal-informados acerca da verdadeira natureza destas gravuras», considerou o ex-governante, para quem sempre foi «evidente» a necessidade de preservar o património natural descoberto no Vale do Côa.

Gravuras do Côa «estão na nossa identidade»

«Quando olhamos para as gravuras e pensamos nas pessoas que ao longo de milénios as fizeram, temos que reconhecer que essas pessoas estão no nosso ADN, estão na nossa história, na nossa cultura, na nossa identidade». Foi com este repto que António Guterres usou as gravuras para alertar sobre a forma como a palavra identidade «tem sido muito mal utilizada recentemente por alguns líderes políticos em várias partes do mundo», que, segundo afirma, a utilizam «como um fator de divisão e de discriminação». Para o secretário-geral da ONU, «a verdade é que a nossa identidade está na nossa diversidade e estas gravuras são uma componente dessa diversidade».

Partindo da realidade local para enquadrar a situação nacional o responsável destacou ainda a importância das áreas da cultura e da ciência no desenvolvimento do país. «Pensar que, sobretudo em período de austeridade, se poupa dinheiro poupando na ciência ou na cultura é um erro grave e espero que em Portugal esse erro nunca mais seja cometido», advertiu.

 

De acordo com a página oficial do Museu do Côa, a primeira rocha gravada terá sido identificada no final de 1991 pelo arqueólogo Nelson Rebanda, apesar do anúncio público só ter acontecido três anos depois. A descoberta provocou polémica pelo facto da barragem hidroelétrica – que estava em andamento – obrigar à submersão do património recém-descoberto. A escolha era entre uma obra estruturante e a preservação de um legado milenar. Após a decisão governamental de cancelar a barragem, e à medida que eram descobertas novas gravuras rupestres, foi criado, em 1996, o Parque Arqueológico do Vale do Côa. Dois anos mais tarde viria o reconhecimento da UNESCO, com a classificação dos núcleos de gravuras como Património Mundial.

Atualmente o Vale do Côa tem identificadas mais de mil rochas com manifestações rupestres, dispersas por 80 sítios distintos. A maioria das gravuras pertencem ao paleolítico, tendo cerca de 25 mil anos.

Sofia Craveiro

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